Caso porque te amo, mato porque me amo, de Ana Márcia Diógenes
Há quem viva para a morte.
E “Não há pior dor do que não ser amada”.
Maria Nazaré Félix de Lima ficou conhecida por matar vários dos parceiros que teve ao longo de sua vida. Quando presa, ficou conhecida como a “Viúva do Sertão”, foi entrevistada várias vezes e contou sua história de como a violência invadiu sua vida, o que acabou chamando atenção da sociedade e evidenciando a impossibilidade de Maria Nazaré de fugir do que o destino, aparentemente, lhe pregara.
“cada um procurou
as senhas da morte
só fantasiei o fim do amor
em lâmina, bala ou veneno”
O livro “Caso porque te amo, mato porque me amo”, da escritora cearense Ana Márcia Diógenes, surge para narrar essa história por meio do verso duro e seco. E algum desavisado pode achar que falta sensibilidade quando se deparar com a leitura do livro, mas quero acreditar que este efeito acontece, provavelmente, porque a autora buscou trazer os “cortes da vida real” de Nazaré para a narrativa. Ou seja, a estrutura do livro, composta em capítulos-poemas, tem uma proposta, um objetivo, mostrar que também não pode haver liberdade sem violência. A voz que se impõe precisa ser forte, o que dialoga, a meu ver, com a dureza e secura que encontramos nos poemas.
“no sangue que esfriou
reconheci a luta perdida
a faca rasgou o intestino
deixei o morto na rede”
Essa fúria que envolve a personagem, com foices e facas, que esviscera homens e que os entrega à morte, possui um contexto, em que a sedução, o amor nada mais são do que ferramentas humanas pra humilhar e sobrepor alguém. Enquanto a sujeita-poemática dessa história canta o seu sofrer, ficamos a saber que “o amor esfria até / no calor do sertão”, e descobrimos o que já sabemos, o homem destrói, não apenas sonhos, mas vidas, que se arrastam de uma maneira solitária e desolada. A “Viúva Negra” não nasce assim, ela é posta em uma condição quase indomável pela estrutura maléfica que o homem cria em torno do sexo, do abrupto, do corte humanitário. Se o veneno que mata o rato também mata o homem, a sujeita-poemática aqui mostra que toda causa pode ter consequência; o destino que pretende levá-la à morte encontra uma mão valente que se ergue e não se intimida, impele o seu âmago a destroçar quem por ela passa e a pensa ser menor.
O mérito do livro, evidentemente, é por uma mulher na posição de algoz, antes que os seus possíveis carrascos possam oprimi-la ao ponto de deixá-la sem voz. Além disso, o livro de Diógenes é muito mais do que um exercício da escrita, em “simplesmente” verter uma história real para um poema-narrativo, é mostrar que a sociedade continua às avessas, que continuamos a tentar fazer com que os abusos permaneçam entre nós e que o medo, acima de tudo, frente às mulheres, continue como uma artimanha possível para dilacerar a sociedade. No entanto, como as causas e consequências aqui apresentadas na obra, temos de estar atentos para as mãos que irão se erguer, com foices, com facas, com canetas, com passeatas, com multidões.
“estão tudo enganado
as mortes foram minha defesa
numa terra de homem que quer tudo
e acha que desejo de mulher é retrato”
Trecho do livro
Uma dança de vidas nas mortes
Eles entram
na minha vida
na minha carne
me querem toda
pisam no amor
tropeçam no desejo
desmontam planos
perdem a dança
o amor esfria até
no calor do sertão
desamor é bordado
puído pelo tempo
cada um procurou
as senhas da morte
só fantasiei o fim do amor
em lâmina, bala ou veneno
de cada amor
ficou a pele arrepiada
das andanças
meus pés
3 perguntas a autora
Ao construir a sujeita-poemática como alguém que reage à opressão com fúria e violência, você sentiu em algum momento a necessidade de suavizar a narrativa ou essa dureza foi sempre uma escolha consciente para refletir os 'cortes da vida real'?"
A dureza da escrita foi uma escolha consciente. Eu pensei a personagem como uma pessoa produto da dureza de uma vida à margem, de uma existência dissecada de qualquer glamour, fruto das provações que mulheres de baixa renda passam, principalmente no interior do Nordeste. Meu planejamento de escrita foi que a personagem reagisse com o mesmo vigor que costuma ser percebido nos homens, uma vez que as estatísticas apontam eles que matando mais as mulheres, do que elas a eles.
O livro propõe a liberdade como algo que também passa pela violência. Como você enxerga a relação entre resistência e destruição no contexto das mulheres que, historicamente, foram silenciadas?
Em casos em que a violência passa a ser linguagem do corpo e também um idioma de defesa, esta é absorvida como meio de sobrevivência. Para continuar a viver, às vezes esta é a única opção. Para algumas mulheres a violência é sim liberdade, e também um desafio a ser perseguido com os mesmos instrumentos com os quais o mundo masculino ostenta seu poder. Historicamente o amor acabou levando mulheres a morrerem sem sequer perceber que eram apenas objetos descartáveis de conquista.
Seu trabalho vai além da narrativa do caso real e denuncia uma sociedade que ainda tenta normalizar abusos. Que reação você espera provocar nos leitores ao colocar uma mulher no lugar de algoz antes que ela seja vítima?
Espero que os leitores percebam na personagem uma mulher que luta pelo seu prazer, por suas escolhas e que reage conforme os tecidos que a sociedade costura no seu corpo e na sua alma. Não pretendo estimular a violência, a vingança, o troco… mas alertar mulheres que amam demais, para que se amem antes de tudo. Quem se ama não se deixa matar, principalmente por amor.
por Nathan Matos