9 de dezembro de 2024

O nobre professor

por Ana Lia Almeida

 

Espero o elevador me perguntando o que acabou de acontecer.

A porta abre, eu vacilo antes de entrar. Penso em voltar, arrombar a casa, esmurrar o professor até até tirar sangue, mostrar que sou homem. Não a bichinha que foi embora desse apartamento de luxo com o rabo entre as pernas. Aperto o botão, me olho no espelho: sou um nojo.

Décimo oitavo andar. Será que eu queria, que desde sempre o desejei sem perceber? Não pode ser. Terá sido por isso que parti de tão longe, um dia e meio dentro de um ônibus fedido, quatro meses sem a sopa da minha mãe? Atravessei tantas barreiras movido por um desejo oculto até mesmo de mim? Não, eu nunca quis o professor, não desse jeito. Queria só que ele me notasse, precisava da bolsa.

Décimo sexto andar. Estudo sem quase dormir nem comer desde que cheguei nessa porra dessa faculdade, tentando me destacar num grupo de fluentes em inglês, espanhol e alemão. Alguns sabem até russo, feito Pedro – o preferido do professor. Não tem como aprender sem ler nos originais, o professor reclama com a gente, vocês estão na melhor faculdade do país. E eu lutando pra conseguir escrever direito em português, disfarçando meu sotaque pra parecer com eles, pra ser igual a Pedro: andar com o professor pra cima e pra baixo, traduzir os artigos dele nas revistas internacionais.

Décimo quinto andar. Eu jamais serei como eles, mas o professor, mesmo assim, gostou de mim.

Décimo quarto andar. Agora vejo porque o professor gostou de mim. Não pela minha inteligência, não pelo meu esforço. Deve estar na minha cara. Como o professor viu o meu fogo secreto, se minha vida é impedi-lo de se alastrar?

Décimo terceiro. Nunca ninguém pode saber do que aconteceu agora e eu nem mesmo sei explicar.

Décimo segundo andar. A culpa é minha. Hoje é domingo, o que eu vim fazer na casa do professor? Ele não tem descanso: escreve artigos, livros, viaja pelo mundo dando palestras, entrevistas para a tevê. Sexta, no fim da aula, mostrei a ele o rascunho do artigo. Venha na minha casa depois de amanhã. Mas depois de amanhã é domingo, professor. Riu sacodindo os ombros, ajeitando os óculos com o dedo indicador: você acha que aqui tem isso de domingo? De onde você é mesmo?

Os domingos do professor não são pra acordar mais tarde e gastar o tempo no sofá assistindo Faustão. Sentar na calçada, que nem eu, e falar mal da vida alheia em vez de aprender alemão. Não. Domingo é pra escrever artigo, montar livro, preparar palestra. E também para dar orientação extra para alunos na casa dele.

Décimo andar. Tá, era um pouco suspeito.

Mas o professor vive pra trabalhar e eu não tinha porque desconfiar de nada. Quer dizer, eu sabia – todo mundo sabia – de umas histórias maldosas envolvendo o professor. Gente ingrata que ele tinha ajudado e depois ficou com raiva porque não ganhou bolsa, porque não foi para o sanduíche na Alemanha. Por sinal, a minha vez está chegando, eu sou o próximo depois de Pedro. Já leio textos técnicos e sei o nome das comidas – fome eu não vou passar.

Próximo semestre é você, falta só ganhar fluência, o professor me encara com olhos cortantes logo que chego na casa dele. Dá três tapinhas no alto das minhas costas, vem descendo a mão; se eu não dou um passo à frente, certamente alcançaria a minha bunda.

Sétimo andar. Puta que o pariu. Como eu sou burro, não é invenção do povo. A gente, do grupo, é que nunca leva a sério – ou não quer acreditar. Ganhamos as bolsas, somos os coautores dos livros, publicamos nas revistas que ele indicada, viajamos pra porra da Alemanha pelo convênio dele. Contanto que estejamos ali para o que precisar, que o defendamos contra as coisas que falam dele: estudante que ele passa a mão, que ele pede boquete, que ele imprensa na parede. Mas ninguém tem coragem de falar abertamente ou fazer uma denúncia, não passa de boatos, conversas de corredor. E ainda tem os outros professores do grupo dizendo que é tudo mentira, que querem destruir a carreira do nobre professor, que vão meter processo, que basta perguntar aos orientandos – e apontam para nós: não é, Fulano? E esse Fulano nem tem escolha, a próxima bolsa é dele.

Quinto andar. A gente não quer ver, não pode ver. Nem mesmo quando Pedro sumiu, do nada, e passou a vagar pela faculdade perdendo cinco quilos por semana. Falta um mês pra viagem dele, já comprou passagem e tudo pra Berlim. Mas de uma hora pra outra, Pedro largou o grupo de estudos. Quando a gente o avista de longe, ele baixa a cabeça e some num corredor.

Quarto andar. O que foi que eu fiz? Por que permiti àquelas mãos pegajosas percorrerem meu corpo, apetarem meu pau, guiarem minha cabeça no vai-e-vem que engolia a carne podre do professor? Vale uma bolsa, isso? Um doutorado na Alemanha? Terceiro andar: esse professor escroto vai se foder comigo! Vou contar pra todo mundo, isso não vai ficar assim. Segundo andar. Não conto pra ninguém. Minha mãe não pode saber que eu sou gay, meu pai vai morrer de desgosto. Primeiro andar. Mesmo que eu conte, ninguém vai acreditar em mim: um cara que veio lá das brenhas e não sabe nem falar alemão.

A porta do elevador se abre e dou de cara com Pedro.

 

Ana Lia Almeida, natural de Recife e residente em João Pessoa, integra o Clube do Conto da Paraíba e o movimento Mulherio das Letras. Autora de Curtinhas da Quarentena e Travessia (ambos pela Ed. Venas Abiertas, 2021), também participa de antologias como Porque Hoje é Sábado (Caos e Letras, 2022) e Sábado (Ed. Dromedário, 2024). Publica textos no blog Salto de Palavras (www.saltodepalavras.blogspot.com