Desimportâncias
por Rafael Caneca
Secar o time dos outros é um ritual quase tão sagrado quanto torcer pelo nosso. Talvez até mais. É como se, no fundo, o coração de um torcedor fosse movido pela física dos vasos comunicantes: a derrota do rival enche de alegria o nosso lado do copo. Não importa se nosso time está numa fase tenebrosa, disputando contra o rebaixamento enquanto o outro briga por um título importante. Ainda assim, o ato de secar ganha contornos de missão, de dever moral.
Não é que faltem argumentos para justificar essa prática, veja bem. Os torcedores sabem como construir narrativas de nobreza. “Eu só quero justiça no futebol”, dizem alguns, enquanto torcem com fervor para que aquele gol impedido no apagar das luzes seja anulado pelo VAR. Outros preferem um tom mais filosófico: “O futebol é equilíbrio. O que é a vitória sem a derrota alheia?” Há também os que secam com o fervor de quem carrega o peso de uma vingança histórica: “Seco porque em 1993 eles riram da nossa queda.” Tudo tem seu porquê.
Talvez o exemplo mais emblemático de secagem coletiva aconteça nas finais de campeonato em que nosso time não está presente. Dois rivais históricos disputando a taça e você, na arquibancada de casa, ajeitando o sofá como quem está no estádio. Não há neutralidade possível: você não assiste ao jogo, você veste o uniforme invisível da torcida contrária. Um escanteio perigoso e o torcedor grita: "É agora que eles erram!" O atacante chuta pra fora, e é como se fosse um gol a favor. Você vibra, comenta, compartilha memes nos grupos de WhatsApp antes mesmo do jogo acabar. É quase como se estivesse jogando.
Mas secar não é apenas desejar a derrota; é, acima de tudo, desejar que a derrota seja trágica. Um gol contra, um frangaço monumental do goleiro, um pênalti ridículo nos acréscimos. Nada dá mais prazer ao secador do que a narrativa do infortúnio alheio. A torcida rival precisa sofrer. E muito. Se possível, lembrar-se desse jogo por anos a fio, como uma ferida aberta que nunca cicatriza. Porque, sejamos honestos, secar é um pouco isso: ser um colecionador de cicatrizes alheias.
Há quem diga que gastamos energia demais secando e de menos torcendo. Que isso revela algo sobre nós, algo pequeno ou mesquinho. Pode até ser. Mas o futebol é paixão, e paixão nunca foi sobre grandeza ou nobreza de espírito. Futebol é sentimento. E secar é um jeito de sentir, de estar vivo, de pertencer a esse mundo irracional e cheio de significados que criamos com a bola no pé.
E, afinal, o que seria do futebol sem essa rivalidade que nos consome? No próximo domingo, vou vestir minha camisa, ligar a TV e preparar a garganta. Não para torcer pelo meu time – estamos em décimo segundo na tabela, pra variar, nem sobe, nem desce – mas para secar aquele que, se depender de mim, não levanta a taça tão cedo. Que meu time continue como está, mas que o deles... Ah, o deles que fique no chão. E que seja lindo.