Incidente noturno
Um conto de Roberto Denser
— A VIDA ERA PRA SER DIFERENTE DISSO, CARA.
Calango preferiu não desenvolver o raciocínio. Talvez achasse que aquela simples declaração fosse suficiente, que ela sintetizava todo um tratado filosófico, expunha uma verdade deveras óbvia e autoevidente. Pereira o observou com indiferença, depois voltou a olhar para a pista. Era um homem pragmático, mais preocupado em cumprir suas obrigações de boca fechada e sem refletir muito a respeito. Pensar demais era perigoso naquele negócio. Sua filosofia pessoal desde que começara era faça o seu, pegue o seu e dê o fora.
Estavam atravessando um trecho particularmente entediante da BR-230, mas ele estava cansado e precisava se manter acordado. Embora àquela hora não houvesse qualquer coisa que pudesse chamar de trânsito, um vacilo e eles rolariam penhasco abaixo em direção ao rio que os matutos da região chamavam de Rio do Louva-a-Deus, sabe lá por quê. Se a única forma de se manter acordado era dar atenção às abobrinhas existenciais de Calango, o que podia fazer?
— Entende o que quero dizer?
— Não — disse Pereira. — Não entendo o que você quer dizer.
— Ah, porra! Tu imaginava que a tua vida ia ser essa merda?
Pereira deu de ombros, ainda sem tirar os olhos da pista. Quando terminasse a missão ia falar pro Zeca da próxima vez arrumar um parceiro menos barulhento. Um mudinho, por exemplo, seria maravilhoso.
— Sério. Tu imaginava? Quando era criança e tal? Eu imaginava que aos quarenta eu estaria nas Maldivas, fumando charuto cubano e cercado de loiras peitudas numa daquelas casas dentro d’água, sabe qual é?
Pereira assentiu em silêncio. Calculou que quando começara não sabia sequer se estaria vivo aos quarenta. As pessoas tinham o péssimo hábito de se aposentarem cedo naquele negócio.
— Uma chupando cada bola, uma com a língua no meu rabo e a outra só na cabecinha. Só na cabecinha. Pois é... —, ele ficou um tempo em silêncio, provavelmente se deliciando com aquela imagem mental, depois balançou a cabeça com tristeza — Agora olha só pra gente, dois fodidos levando a rapadura do diabo lá pra puta que o pariu pra ganhar o quê, quarenta contos cada?
— Vinte cada. E você pode pegar a sua parte e levar umas cinco putas lá pras Maldivas ou sei lá o quê.
— Com vinte mil? Com vinte mil eu não consigo levar umas cinco putas nem pra festa da padroeira de Quixadá!
— O seu problema — disse Pereira, tirando os olhos da pista e encarando-o — é que você acha que precisa pagar por tudo.
Calango estava se preparando para responder com mais uma reclamação (“Isso se a PRF não nos pegar!”), mas o carro deu uma sacolejada e algo rolou embaixo deles. Ambos olharam para a pista, se preparando para uma capotada que não veio. A seguir, olharam para trás (Pereira pelo retrovisor, Calango pelo vigia).
Lá atrás, uma sombra preta e disforme parecia rolar no chão.
— Que merda é aquela? — perguntou Calango.
Pereira retomou o controle do veículo e continuou dirigindo, sem tirar os olhos do retrovisor. O cenho franzido.
— Não parece gente —, disse, agora totalmente desperto. — Deve ser bicho. Ou então é um toco.
— Não vai parar pra ver?
— Óbvio que não. Eu não pararia nem que fosse a minha mãe.
Calango analisou aquela resposta em silêncio. No seu peito, o coração começava a desacelerar.
— É, faz sentido. Faz senti—
Não concluiu a frase. Ao voltar a olhar para o vidro traseiro do veículo, viu a sombra se levantar e começar a correr e saltar na direção deles.
— Caralho, Pereira!
— Tô vendo — disse Pereira, boquiaberto — Tô vendo. Põe o cinto.
Sem pensar muito, Calango levou a mão à cintura, mas lembrou que só pegaria a arma na próxima parada.
— Merda… — murmurou, colocando o cinto enquanto Pereira fazia o mesmo.
Atrás deles, a sombra assumira uma forma humana, mas não corria como se fosse humano. Aliás, pensou Calango atabalhoadamente, um humano não correria daquela forma nem antes nem muito menos depois de ser atropelado. Pereira, tão impressionado quanto Calango, mudou de marcha e acelerou. O homem-sombra, no entanto, continuou correndo e saltando atrás deles, e parecia cada vez mais perto.
— Que porra de caralho de cara corre assim, porra?!
Pereira continuou acelerando. Olhou para o velocímetro e viu que o ponteiro já cruzava a barreira dos 120km, depois olhou para o retrovisor e viu, mais intrigado do que qualquer outra coisa, que a porra do homem-sombra continuava se aproximando.
— Que-que-que…
— Arma — disse Pereira — Fundo falso. Porta-luvas.
— Que-quê…?
— Arma, porra. Porra. No porta-luvas. Arma.
Calango assentiu com os olhos esbugalhados e abriu o porta-luvas.
— Soca o fundo com força — disse Pereira.
Calango fez o que ele mandava e encontrou, colado com fita-adesiva, uma porra de um trezoitão. Em outras circunstâncias teria reclamado, mas naquelas circunstâncias um trezoitão era melhor que nada. Segurou a arma firme na mão e respirou fundo.
— Vai parar?
— Não. Esse sujeito não é normal —, disse Pereira, mais uma vez olhando o velocímetro e então para o retrovisor — Filho da puta deveria estar nas olimpíadas.
Calango olhou para o vigia. O homem-sombra-corredor agora estava tão perto que que ele podia ver que se tratava de um cara muito peludo e de pernas finas, e tinha uma cabeça maior que o normal. Parecia um…
— Ele tá de capacete! —, gritou Calango loucamente.
Pereira olhou para o retrovisor.
— Saporra é um motoqueiro! Ele tá pelado e de capacete!
— Motoqueiro é a minha pica, disse Pereira — Não tinha moto nenhuma.
— Atiro?
— Só se ele nos alcançar —, disse Pereira, pensando que não seria uma boa ideia passar num posto da PRF com marcas de tiro no vidro traseiro do veículo.
Atrás deles, o homem-sombra continuava a correr. Cada vez mais perto, não importava que o carro agora estivesse a quase 140 km/h.
Filho da puta corredor dos infernos, pensou Pereira sombriamente, olhando para o retrovisor. Viu a coisa-sombra juntar os braços numa posição esquisita, como se estivesse se preparando para mergulhar.
— Atira! —, gritou, ao perceber o que ele se preparava para fazer — Ati —
Antes que Calango pudesse processar aquele comando, a coisa-sombra pulou sobre o carro com um pesado “puc”, fazendo com que Pereira perdesse totalmente o controle do carro, que primeiro se inclinou para um lado por um nanossegundo, depois girou sobre si mesmo e capotou algumas dezenas de vezes, rolando em direção ao penhasco.
Nem Pereira nem Calango conseguiram processar o que estava acontecendo a ponto de construir um simples pensamento minimamente coerente, mas quando o carro parou de capotar, felizmente virado para o lado de cima, Calango, com a boca cheia de sangue e um osso sabe lá de onde, provavelmente da costela, saindo pela lateral da clavícula direita, pensou, praticamente ao mesmo tempo um:
Putaqueopariu!
Um:
Cadê o puto-sombra?
E:
Meu revólver!
Ao seu lado, Pereira não pensou nada. Estava morto, pálido, com uma expressão de estudante burro tentando entender um conceito complexo eternizada no rosto.
Calango tentou soltar o cinto, mas não conseguiu. Tentou respirar, mas se engasgou com o próprio sangue.
É, pelo visto as Maldivas já era…, pensou, sentindo o mundo apagar.
Um barulho, contudo, o despertou. Passos. Não passos comuns, mas algo rastejante, de alguma forma chacoalhante até. Alguém, alguma coisa andava em volta do carro.
Ele olhou em volta tentando ver o que era, voltou a lembrar do homem-sombra.
— Merda —, murmurou, tentando mais uma vez soltar o cinto — Merda…
Ao seu lado, uma sombra escureceu ainda mais aquela noite sem fim. Ele olhou e a viu claramente pela primeira vez. Teve certeza de que alucinava. Aquilo simplesmente não era possível.
— Tzzzzzz, tzzzzz, claclacclacltzzzzz —, fez a coisa.
Calango não entendia o que ela queria dizer, mas traduziu intuitivamente como:
— Peguei vocês, seus filhos da puta.
E quase teve vontade de rir.
A criatura tinha um tronco de homem, com pernas e braços esguios e longilíneos, e uma cabeça de inseto, com grandes olhos pretos e úmidos, e garras em forma de pinça onde deveria ficar a mandíbula. Sua pele era verde-escura, e parecia ter a consistência de uma armadura.
Rio do Louva-a-Deus, pensou.
Calango começou a rir.
— Eu pensei… pensei que você fosse um motoqueiro —, disse por fim.
— Tzzz, tzz, clactzuclac —, disse a criatura.
Ou talvez estivesse rindo também.