Vida de Cupido
Chegou voando e já veio metendo o pé na porta. Não estava para conversa e foi logo chamando pelo gerente da repartição:
- Quero falar com o responsável.
- Sou eu mesmo. Responde o balconista.
- Você é muito jovem. Quero o superior - Disse nervoso.
- Pode falar. Em que posso ajudar?
Vendo que não adiantaria discutir, foi soltando o verbo.
- Quero fazer uma reclamação formal.
- Pois não.
- Minhas flechas não estão surtindo mais efeito. Parece que não estão funcionando mais.
- Deixe-me ver aqui. (Levou um minuto verificando o computador à sua frente). Ah sim, aqui está. É que agora estamos lançando um programa novo! Outra forma de ação. Algo mais moderno, mais arrojado.
- Como assim, mais moderno? Faço meu trabalho há milênios e até hoje ninguém reclamou!
- Tem certeza? – Diz com certo desdém. E o caso daquele cara lá, o Menelau? O senhor viu a confusão que deu, né?
- Bem, eu não tive culpa. Tem o livre arbítrio também, né? – Respondeu meio desconcertado.
- E aquele outro caso daquela menina egípcia? A Cleópatra. Ela não teve diversos casos amorosos com os irmãos e tudo mais?
- É... mas veja bem... – respondeu meio cabisbaixo.
- Pois é. E olha que eu nem vou comentar os casos mais atuais.
Vendo que estava tomando uma bronca daquelas, revidou.
- Olha aqui. Não vem com essa não, viu? Pode ir cortando essas asinhas aí. Isso aí é uma porcentagem muito pequena no meu curriculum. Tenho anos de serviço prestado e isso aí pode ser considerado como um pequeno deslize.
- Diga isso para as centenas de troianos e gregos, ou romanos e egípcios, que morreram por causa desse "deslize" aí.
- As minhas flechas sempre foram certeiras. Com exceção desses casos aí eu nunca errei a pontaria. Posso provar agora mesmo. E fez menção de retirar da aljava uma das flechas.
- Que flecha, que nada. O negócio agora é digital (dando um tapinha no computador). A juventude de hoje só quer saber de combinar pela internet.
- O quê? Mas isso está errado! Cadê o romance? As flores? A sedução dos amantes?
- Acorda, ô Flecha murcha! Que sedução que nada! Ninguém perde tempo com essas coisas mais não! Ficar mandando bilhetinho, aí o amigo vai entregar, aí é uma semana para responder e blá blá blá. Não... isso é coisa do passado. O negócio agora é no app.
- No app? Como assim?
- Isso mesmo! No aplicativo. A pessoa vê a foto do possível par e pronto. Se gostou, clica no botão e marca o encontro. Se não gostou é só arrastar pro lado.
- Arrastar pro lado?
- Se liga, Vovô. Já tá na hora de pendurar esse arco aí! O negócio agora é Tinder, Happen, eHarmony, Namoro On, ParPerfeito, sacou? As pessoas se cadastram e colocam suas fotos. É só escolher....
- Como numa franquia de fast food? Número 1, número 5, combo nº 2?
- É, mas sem a possibilidade de aumentar as batatas fritas ou refrigerante.
- Isso é um absurdo! Disse revoltado. O amor entre as pessoas não é algo a ser tratado assim, como um combo de lanchonete!
- O que não pode é o sujeito perder tempo, Rapá. E o pessoal novo da repartição não quer ficar batendo asa por aí por muito tempo não. Isso é coisa de antigamente! Sair por aí voando a esmo, só com esse paninho que mais parece uma fralda geriátrica, pra escolher em quem atirar a primeira flecha, não dá. Meio fora de moda, não acha não? Até porque, o pessoal do financeiro já barrou esse negócio de compra irrestrita de flechas. Gastava-se muito. Tivemos um corte gigantesco de verba. Hoje todo mundo tem uma cota de flechas por mês, e é pouca.
- Pessoal do financeiro?
- É, Vovô! Os tempos são outros. Hoje a hora de voo tá mais cara. Não é igual no seu tempo não! Tá caro pacas! Interestadual então, tá de lascar! Foi por isso que criamos os aplicativos. Tudo agora acontece num raio de ação!
- Não pode ser! Gritou indignado
- Aqui, Vovô. Não vem botando as asinhas pra fora não. E outra: Ninguém quer ficar levando namorada em casa mais não. Tá perigoso demais ficar na rua de madrugada. Tudo isso é coisa do passado.
- E as flores e os chocolates?
- Chocolate só se for acima de 75% e sem lactose. Hoje é todo mundo fitness, meu velho.
- Impossível. Retrucou incrédulo.
- A serenata também acabou, fique sabendo.
- Não tem mais serenata?
- E quem é besta de ficar perambulando de madrugada! A violência tá um horror. A noite já não é mais dos poetas e dos que morrem de amor, não. A noite é da milícia!
- Milícia?
- É.
- E esse negócio de app tá funcionando?
- Bem, confesso que estamos atualizando o sistema no momento. Às vezes dá um bug ou outro, mas o pessoal tem gostado muito. Fique sossegado que agora a gente toma conta. Vá curtir aquela nuvem que o senhor tanto gosta e deixe o trabalho aqui com a gente. Só passar lá no RH e assinar seus papéis.
O cupido mais velho, desiludido, com as asas murchas, sai arrastando o velho arco. Relembrou da carreira que fez e das mais lindas histórias de amor que havia ajudado a construir. Cabisbaixo suspira para si mesmo:
- Vida de cupido não é mais a mesma.
por Alberto Lacerda