Turma do Saci
O bar, enfeitado com teias de aranha e morcegos que se penduravam pelo teto, estava lotado e o garçom já tinha servido o sexto chopp. Os petiscos, estilizados para a ocasião, vinham em potinhos em formato de caveira ou abóbora. Nada extravagante, mas o suficiente para chamar a atenção.
- Rapaz, você já percebeu essa maluquice de comemorar Raloin?
- De quê?
- Raloin. Esse negócio aí de Dia das Bruxas.
- Ah, você quer dizer Halloween.
- Porra, Bicho. É sério? Vai implicar comigo agora? Relouwiin – disse com desdém.
- E o que é que tem o Halloween? – perguntou o amigo.
- Pô, é um absurdo isso. Não acha não?
- Ah, sei lá. Nunca parei para pensar nisso.
- Pra variar, né? Pra variar...
- Lá vem você reclamar das coisas. É sempre assim.
- É porque você é besta demais e não percebe as coisas.
Dando trela para o colega, continuou com as perguntas enquanto sinalizava para o garçom pedindo uma porção estilizada de filé com fritas.
- E o que é que eu não estou percebendo?
- Pense aí, você comemorava o Relouwiin (disse novamente com desdém) lá nos anos 80, quando a gente era criança?
- Não...acho que não.
- Claro que não. E sabe o porquê?
- Não faço a mínima ideia.
- Porque não existia esse trem de comemorar Relouwiin (novamente desdém), Rapá! Nunca existiu. Isso era coisa de filme americano. A gente nunca comemorou isso não. Sabe o que a gente comemorava?
- O que?
- Não lembra não?
- Fala logo, Bicho.
- Era o folclore. Lá nos anos 80 a gente celebrava o folclore brasileiro com todos os seus personagens. A mula sem cabeça, a Caipora, o Saci, o Curupira a Mãe d'água e tudo quanto é coisa.
- É verdade – exclamou com certo saudosismo.
- Hoje ninguém comemora isso não. Já viu alguma criança imitando o Curupira?
- Eu não.
- É porque não tem. E se tivesse algum menino desses aí andando pra trás, é bem provável que o povo achasse que era um tipo de Moonwalk do Michael Jackson do que o Curupira.
- Você é besta demais. - Disse o amigo rindo.
- Tá lembrado das aulas lá do primário? A gente fazia gincana e peça de teatro, cara.
- Verdade. Lembra que você se fantasiou de Curupira uma vez? As meninas da sala tiveram que pintar você todo de verde.
- Se eu lembro? Sei lá quantos litros de tinta passaram em mim.....tinha tinta debaixo da unha e até dentro do nariz. Foi uma semana pra sair tudo.
- E eu nem sei se o Curupira era verde. Era verde?
- E eu sei lá! Só sei que fiquei todo pintado na frente da escola inteira.
- As escolas de hoje não fazem mais isso, né?
- Fazem nada. Aposto.
- Porque será?
- Porque a gente é besta, isso sim. Fica copiando tudo quanto é coisa de americano.
- Lá vem você.
- Mas é verdade. Pense bem. Antes não tinha nada dessas coisas. A gente só assistia nosso futebol, via nossa fórmula 1 e só. Agora, a televisão, a internet, os streamings passam esportes americanos de forma corriqueira.
- Pô, e isso não é bom? Ter variedade?!
- Não sei não. Por conta disso, agora temos times de futebol americano aqui no Brasil. Tem guri por aí que fala que torce para um time de baseball qualquer que eu nem sei pronunciar o nome.
- E daí?
- E daí que os caras vão recolonizando a gente outra vez. E a gente, ao invés de criar algo nosso, de valor, ficamos adorando os caras. É futebol americano, é baseball, é Relouwiin (desdém)...
- Cara...
- É sério, Velho. Antes a gente só aprendia verbo tu bi.
- Verdade – E dá um risinho discreto.
- E outra... Eduardo Galeano já falava isso. Já leu Eduardo Galeano?
- Já sim, claro! Muito bom. – E fez sinal para o garçom trazer mais dois chopps.
- Sim. Excelente mesmo. No Livro dos Abraços ele fala que a televisão nos vende ilusão. Que fica disparando imagens que reproduzem o sistema e vozes que lhe fazem eco. E que nós comemos emoções importadas como se fossem salsichas em lata. Veja lá pra você ver.
- Forte, né?
- Demais. Mas ele estava errado? Não estava. Ele estava certo.
- É, mas...
- Não tem mas, meu chapa. É tudo uma máfia. Ariano Suassuna já falava também... já leu, Ariano Suassuna?
- Claro.
- Pois é. Ele falava que para colonizar, melhor do que mandar tanques e soldados para conquistar um novo país, era mais barato mandar o Michael Jackson e a Madonna. Saía mais em conta.
- Eita. Não lembrava dessa não.
- Pois é. Ariano falava que a gente, que tem o instinto sempre colonial, já tentou ser como Portugal, lá nos idos de 1800 e bolinha, ao copiar as roupas e o jeito de nossos governantes. Que depois passamos a copiar e a querer ser como a França, como Paris, copiando o estilo. E que agora, de forma tosca, nas palavras de Ariano, não minhas, buscamos copiar o estilo de ser do americano.
- Ah, mas o brasileiro é patriota, vai?!
- É nada. Brasileiro só é patriota no futebol e no carnaval. E do jeito que a seleção tá indo, daqui a pouco nem no futebol. Vai vendo.
- Aí você já pegou pesado.
- Será? Tem gente que prefere ver o jogo do Barcelona do que ver o jogo do Vascão.
- Pô, mas aí também, né Zé? Só perde, pô.
- O negócio não é esse, Velho. O negócio é que o guri de hoje já torce para o time de fora, lá dos gringos, e nem se interessa pelo nacional.
- Tá. Entendi o seu ponto de vista.
- E outra coisa. Com o Vascão nunca podemos perder a fé. Temos que acreditar.
- Tá certo.
Os dois fazem o sinal da cruz e o garçom coloca na mesa os dois chopps.
- Mas voltando à vaca fria, esse negócio de Dia das Bruxas só existia em filme americano e nas, poucas, escolas de inglês. A gente chegava lá e tinha os morcegos e as abóboras penduradas, lembra? Mas agora, esse negócio ficou corriqueiro, ordinário. Você vai em qualquer lojinha por aí e tem lá os enfeites de Dia das Bruxas.
- É. Hoje mesmo passei em frente a uma delas e estava lá uma moça arrumando os enfeites.
- Pois é. Outro dia mesmo eu estava ouvindo a rádio e o cara lá falou que o dia 31 era dia de Relouwiin (desdém). Mas que também era dia do Saci. E continuou dando a seguinte ideia; que poderíamos rever esse dia do saci para que ele, o saci, não ficasse a reboque; uma vez que as manifestações, e as atenções, estão todas voltadas para o Relouwiin (desdém) que é o dia oficial. Pô, Bicho. Tá de sacanagem, né? Oficial? Oficial de quem?
- Não sei o que dizer.
- Pô, eu fico puto com isso. Cadê o Boitatá, A Cuca, o Lobisomem? Cadê Monteiro Lobato? Temos que ler mais Monteiro Lobato, Velho!
- É...você falando assim faz até sentido.
- Relouwiin é o escambau. Nós somos da turma do Saci, Cara. Do Saci.
- Pensando assim...
- Pense ai. Não seria a mesma coisa que descrever a nossa fauna repleta de ursos pardos, águias e alces?
- Pô. Nem tanto vai?
- Tô te falando. Lança aí a moda pra você ver. E mais, daqui a pouco a gente adota também o dia de ação de Graças dos caras.
- Ah isso não.
- Acredita não? Deixa algum artista ou programa de TV falar que comemora o dia de Ação de Graças que você vai ver. Logo logo aparece gente lançando essa moda aí.
E enquanto a conversa rendia, uma menininha vestida de fantasma chega na mesa e pergunta:
- Tio, tem bala aí?