O homem bala
No meu tempo de menino, o mês de outubro era especial porque costumávamos ter uma semana de recesso. Era chamada a semana do saco cheio, pois, naquela época, nosso calendário letivo emendava o feriado do dia 12 de outubro com o dia do Professor, comemorado no dia 15. Isso nos proporcionava uma semana inteira sem tarefa de casa para fazer, ditados para tomar ou ter que acordar cedo. Era uma maravilha!
A nossa preocupação era saber se iríamos andar de bicicleta, brincar de combate no Vietnã ou tentar convencer o tenente do Tiro de Guerra a deixar a gente jogar bola na quadra do destacamento local. Mas dentre as diversas possibilidades, o bom mesmo era participar das tardes de comemoração do Dia das Crianças no clube da cidade.
Minha mãe costumava nos deixar lá (minha irmã e eu) logo depois do almoço e combinava de nos pegar por volta das 5 da tarde! E apesar de ser o mesmo clube que frequentávamos todo domingo, o ambiente parecia ganhar uma outra atmosfera com todo aquele barulho e música e decorações.
Brincávamos de muitas coisas. Tinha corrida de saco, corrida com o ovo na colher, pique-pega (engraçado, acho que a gente só vivia correndo), futebol, roubar bandeira, queimadas…correr, correr e correr. O engraçado é que eu só me dei conta disso agora, ao escrever essa crônica, do quanto nós vivíamos correndo.
E é nesse espírito desportivo de corrida que me recordo de um dos eventos mais emblemáticos do Dia das Crianças do meu tempo de menino. O Homem Bala! Sim, meus amigos, o Homem Bala era o espetáculo mais esperado de toda uma temporada. Não tem último capítulo de Friends, Big Bang Theory ou Game of Thrones que chegasse perto do hype causado pelo o Homem Bala.
O clube, simples e normalmente com poucos atrativos, era enfeitado com balões, circuitos com brincadeiras diversas e tantas outras parafernálias lúdicas que se tornava, praticamente, irreconhecível. Na área do bar, onde ficavam as mesas nas quais os adultos costumavam jogar dominó, tinha um imenso balcão de mármore branco. Em uma das extremidades desse balcão tinha uma porta, que dava para uma antessala onde eram estocados alguns engradados de refrigerante. E era dessa salinha que saía o Homem Bala.
Tudo começava com um apito. Algum organizador assoprava aquele negócio diversas vezes até que todas as brincadeiras eram interrompidas e todas as crianças corriam e se amontoavam em frente a porta onde sairia o sujeito! O cara segurava a maçaneta da porta e gritava par a criançada “Vai sair...é agora...vai sair...prepara...”. Era a nossa versão da Porta dos Desesperados.
A emoção era grande demais e mal cabia no peito. Todo mundo naquela expectativa, com os olhos vidrados naquela porta, o coração batendo cada vez mais rápido e a inquietação tomando conta de todo o corpo. Dava para sentir a tensão no ar. Um dos meninos mais velhos gritava em falso e dois dos mais novos queimavam a largada. As risadas e os gritos de chacota ouviam-se de longe. “Vai sair...é agora...vai sair… prepara...”
Quando, finalmente, a porta se abria, emergia lá de dentro uma figura folclórica como nunca antes vista! Um homem mascarado saía correndo desembestado, furando o aglomerado de crianças que faziam obstáculo em frente à porta, vestido com um macacão verde, como os frentistas de posto de gasolina costumam usar, com mais de duzentas balas e bombons costurados na roupa.
O objetivo era pegar as balas e doces que estavam costuradas na indumentária do corajoso voluntário. O problema é que nós crianças, não éramos nada delicadas, e para pegarmos as balas, tínhamos que primeiro, derrubar o sujeito! E durante um bom tempo, todos nós tentávamos alcançar o Homem Bala. Saíamos em disparada como na Festa de San Fermín, em Pamplona, na Espanha.
O cara corria como se a sua vida dependesse daquilo. Uma nuvem de poeira e criança se formava atrás dele atravessando todo o clube. Passávamos pelas mangueiras que ficavam atrás na churrasqueira, corríamos pela beira da piscina e até pelo estacionamento. A algazarra era tamanha que os gritos podiam ser ouvidos à distância. “Pega...pega...” Mas o clímax da perseguição acontecia mesmo no campo de futebol!
O cara driblava todo mundo! Uma gingada pra lá e outra pra cá e era menino escorregando e tropeçando uns por cima dos outros. Tinha gente que ria tanto que não conseguia nem correr.
Até que em determinado momento, um dos meninos mais velhos, já quase alcançando, dava aquele totozinho no calcanhar do rapaz que saía catando cavaco, até se desmoronar no meio do campo. Em segundos já tinham cinco, doze, vinte crianças se amontoando no Homem Bala, que só conseguia dizer:
Calma, Gente! Vamos com calma…ai, ai...
O alarido e a euforia preenchiam o campo de futebol! Há quem diga que parecíamos hienas na carcaça. Eu não sei dizer, estava lá no meio tentando conseguir alguma recompensa. Toda a aventura não passava de alguns minutos; mas valia pela tarde inteira!
No final, o olhar perplexo daqueles que ao sair debaixo do amontoado de gente, buscando saber o que tinha nas mãos, já garantia boas risadas. Alguns saíam chorando, desolados, mostrando as mãos com os bombons amassados e sujos de grama. Outros vinham, também cabisbaixos, por terem conseguido apenas duas ou três balas. Tinha gente que vinha só com o papel. Os mais espirituosos riam da cena e dos amigos. Mas tinha aqueles que vinham altivos, com mão cheia e orgulhosos de si mesmos. Mas no final, tudo se dividia. Cada um de nós voltava para outra brincadeira relembrando (e celebrando) o que acabara de acontecer. O único que se levantava vagaroso, e abatido, era o Homem Bala!
por Alberto Lacerda