10 de setembro de 2024

Três contos de Emerson da Cunha

a mosca já zonzeava zonza pelas bananas há muito maduras, quase um cesto inteiro no final do dia, mas aquelas últimas ali do canto, ainda dá pra levar, faço três cachos desses por cinco se quiser, leve mais outro, amanhã to aqui de novo, viu, mais amarelinha, mais verdinha, até mais, é que o tempo havia mesmo mudado nos últimos dias, muita chuva e trovão e alvoroço, um frio que ninguém imaginava, e parecia mesmo que, nas cidades litorâneas, tudo começava a apodrecer logo, mais cedo, de imediato ao ser retirado das terras e dos cachos, de modo que toda a logística havia mudado e era preciso trazer tudo muito rápido, muito mais cedo, pra dar conta mas nem sempre dava, tudo ia embora logo, até as pessoas fediam mais, e envelheciam cada dia mais cedo, era visível, foi quando o cheiro de urina subiu e evaporou nas ventas de quem comia nos boxes da entrada do mercado central, não sei se era mijo de cerveja ou de cachaça, de macho ou de cachorro, mas o caso é que me animava e apetitava o PF da lanchonete do canto, não ficava desagradável de comer, eu até gostava, as narinas apertavam e apetitavam o paladar já meio ocre do vômito que eu tinha dado logo cedo ao acordar, mas foi o cachorro que olhou e, naquela olhada que ele deu pra trás, saiu correndo fugindo, era o sintoma de um corre, dois correm, três correm, sete correm, dez correm, duzentos correm, um estádio inteiro corre, minutos a passar, eu ali sentado a olhar e olhar e olhar mais e mais homens agora mulheres mesmo jovens e crianças, os bebês nos colos, todos corriam os corredores da feira inteira, gente brotava do chão para linchar o pobre coitado, foi pura maldade aquilo, o povo só quer isso aqui [faz um gesto em que a ponta da unha do polegar faz força conta a cabeça do dedo do indicador] para danar o cacete nos outros, eu mesmo m’escondi, não gosto dessas presepadas, permaneci até a noite, a única saída é por trás, escadas, cervejas a mais, a noite de sábado que começava os ônibus que passavam muito rápido preferimos pegar um uber não moto porque tenho medo eu posso pagar agora e você me passa o pix depois a placa é mzr cinza fica de olho pode ser

 

***

 

Queria mesmo era comer o pé do moleque.

Também pudera, pé belo, bonito, confortável dentro da boca, no tamanho certo do seu maxilar a abrir e a se enforcar com dedos grandes e dedos mindinhos – chamamos mesmo de “dedos mindinhos” os menores dedos dos pés?

No entanto, precisava, mais que precisava: a sua sobrevivência dependia fatalmente de ficar à mercê do pé bem cheiroso de D., o marido estrupício para o resto da vida. Pé limpo demais, unhas aparadas, nenhuma mancha, nenhuma brotueja, nenhum pelo a mais, sola impecável.

Gostava mesmo da explosão da sua língua na fricção dos pés cheios de camadas de pele de calos e mais calos de mais de uma vida inteira. Gostava da fogueira que lhe incendiava quando uma unha mal cortada lhe cortava a gengiva, os nervos e/ou o ceu da boca, não necessariamente nessa ordem.

Àquela altura da quadrilha, com o “anarriê” já se estendendo mais que demais, o pé do moleque besta, sujo, gostoso e magrinho já estava empapado de suor por baixo da meia branca, que recebia a água salgada e quente que jorrava de todo o corpo, inclusive dos grandes tufos de pentelhos que deveriam saltar de sua cueca para todos os lados e todos os dias.

Foi quando, no “olha a cobra”, o susto lhe agarrou e lhe jogou como que de braços e bruços ao encontro de poetas quaisquer que poderiam escrever um romance de amor e putaria a partir do seu corpo, que nunca mais dançaria do mesmo jeito: caía de boca, dentes quebrados, por sobre o preto enlameado da bota do moleque, lambeu como nunca quis lamber nada nunca mais na sua vida e morreria de tesão e parada cardíaca após vinte minutos enquanto comia, de pé, o pé do moleque.

 

***

 

Do cafezinho, T. fazia um evento daqueles. Origem humilde, aprendeu logo cedo a cozinhar prum monte de gente, ela e mais os seis irmãos que viviam na sua aba enquanto mainha e painho saíam atrás de trabalho: bico com um conhecido, dinheiro de faxina qualquer, entrega marcada de ser feita.

Aprendeu cedo a identificar o prazer que sentiam quando a cafeína lhes descia a garganta, o axé que subia de seus poros, o ar de cansaço passando, a pele se embelezando, mais brilhosa. Aprendeu a fazer cafezinho, cafezão, café de todo jeito, mas o pequeno era sua predileção. Passaram a adorar o gosto, diziam que ela tinha lá suas receitas, simples, mas próprias, pra fazer um café entroncado de sabor fino e cheiro gostoso como ninguém. Nunca se atreveria a comentar de suas cafeínicas aventuras para ninguém, diziam. Também seria indelicado perguntar-lhe qualquer coisa nesse sentido.

O sucesso foi além da mesa da sala, porque o cheiro atingia em cheio as casas vizinhas e todo mundo se perguntava quem fazia aquele cafezinho tamanho cheiroso, e seguiam até dar nas xícaras dos meninos e meninas da casa. Por alguns trocados, T. começou a fazer o café das casas alheias e todo mundo vizinho também das casas alheias comentava como eram, de anjo, aquelas mãos, que saudavam, ao mundo e às bocas desse mundo, esse café tão saboroso e encantador. Inebriante, até.

Sempre que cada casa alheia abria sua garrafa térmica entregue logo cedo ou no final da tarde pelos irmãos e irmãs de T., os vizinhos alheios das casas alheias, ao lado, logo à direita, à esquerda, de cima ou abaixo, no subsolo, nas outras vizinhanças e nos bairros mais próximos: encantavam-se com o cheiro e, em poucos dias, se tornavam clientes fiéis daquele cafezinho-igreja; e se deixavam acolher pelo sabor de café que lhes subia o cérebro e ofertava tanta viva vida àquele povo.

Não demoraria para chamarem T. para servir à copa de uma empresa famosa, farmacêutica de comprimidos contra HIV, e com um salário até bom. Chamaram pra fazer-lhes o cafezinho, aquele mesmo cafezinho que tanto se elogiava na comunidade do arredor, ao lado dos prédios mais altos do centro da cidade. Precisando do dinheiro, aceitou, aceitou e aceitou vender seu cafezinho pros pilantras que cuspiam em direção à sua comunidade.

1. era bem tratada pelo pessoal. Na verdade, isso para não dizer que era tratada mesmo com indiferença, até certa ignorância, porque nem mesmo seu nome ou mesmo dela se lembravam: era apenas um corpo de trabalho encarregado de trazer o cafezinho, que vinha magicamente de algum lugar que não se sabia até às bocas sedentas de trabalho e gana. O cafezinho, sim, lhes fazia falta, e, se atrasasse um, ou dois ou três segundos, era um “cadê a moça do café” pra lá, um “a gente paga salário pro povo não trabalhar!” pra cá, um “ai, sem aquele café eu não consigo trabalhar!” ali, um “cade, T.?”, aculá.

2. havia se tornado ela mesma cafezinho, e era assim conhecida, da copa minúscula ao resto da empresa, a “mulher do cafezinho”, a “preta do cafezinho”, a “velha do cafezinho”. Havia se tornado ela mesma suas próprias garrafas térmicas que enchiam e desciam, pelos copos descartáveis, boca e estômago, o café por ela preparado de forma suave e suculenta, mas banal pro paladar daquele povo.

Cafezinho era seu nome, sobrenome, era o nome que saía na sua folha de pagamento, era o nome pelo qual era paga e cobrada. Cafezinho. Dona Cafezinho.

Cafezinho não é cafezão, nem café pequeno, é a pausa do dia, a concentração de suor e trabalho para quem precisa despertar cedo, descansar e se arrebatar, é santidade que parte o dia e se escorre nas xícaras ocas, com muito mistério e sem mistério algum. são três colheres, água pouca concentrada, se possível benta, uma pitada de canela, vai colocando água bem fervente de pouco em pouco, misturando com colher de rota fina até engasgar o coador e moer-lhe os diâmetros, é mais o jeito de fazer. O cafezinho reúne gente, pessoas, em volta dele, os segredos, os escândalos e as fofocas, as escritas e o sexo também,

confidenciaria finalmente T. para M., a nova empregada do cafezinho da copa, como um momento derradeiro, final,

Mas um detalhe faz toda a diferença, nesses casos.

Não foi difícil para M. perceber logo ao lado, dobrando a esquina da copa para o corredor que dava aos escritórios do andar, após a rodada do café das 9h: saiu contando no caminho uns 150 corpos embrutecidos pela morte de overdose de cafeína, todo mundo do andar. T. saiu da copa e atravessou os corpos jogados ao chão ainda quentes - não se sabe se pelo café, a cafeína ou se era só sangue recente mesmo - por sobre o carpete de veludo azul.

Passou por cima dos corpos de homens, mulheres, pessoas trans e intersexuais, todas, todos e todes, gente que estava morta e latente ainda, esperando o corpo esfriar pra morrer de verdade. Seguia em direção à janela, que ficava no outro canto da sala. Abriu, acendeu o cigarro para fora, o receio era que o alarme de fumaça fosse provocado e desse em escândalo. Fazia frio. Talvez nevasse.

Bom dia, Nova York.

 

 

Emerson da Cunha é jornalista pela UFPB e mestre em Comunicação pela UFC. emersoncsousa@gmail.com @memersonn