Uma família feliz, de Raphael Montes
Apesar de demandar grande esforço, tudo ainda parece um sonho. Na verdade, um pesadelo. Irreal, intangível, como se acontecesse em outro tempo ou com outra pessoa […] É umcaminho repleto de buracos e zonas cinzentas. Não posso ficar sofrendo. Não tem mais volta. Aconteceu.”
Somos convidados a ser cúmplices de uma trama que já se inicia pelo último capítulo, exilados a ideia de um spoiler que não entendemos nada ainda, mas que seremos intimados a procurar entender. Nosso papel, como leitor, é tentar encaixar o que nos é entregue, ou, ao menos, procurar compreender o que houve para que uma família que deveria ser perfeita esteja aos cacos.
Uma Família Feliz é um romance ambientado num condomínio de classe média alta, em seu grande desenrolar. Um fato interessante ao ser definido “Rio de Janeiro” como o local dos acontecimentos é o constante lembrete de quão perigosa é a cidade, seja em bairros periféricos, citados, ou na menção do “depois dos portões”, criando em nosso inconsciente a mensagem que o perigo está do lado de fora, mesmo que os maiores perigos tenham a tendência a morar dentro, de nós mesmo, ou, nesse caso, dos muros que cercam o Blue Palace.
Acompanhamos uma familia feliz, dando nome ao livro, na perspectiva de Eva, uma amável madrasta, futura mãe e linda esposa, que tem como seu trabalho dos sonhos ser uma cegonha, a artesã por trás da confecção de bebês reborn, um trabalho visto por uns como um milagre e por outros como algo fúnebre, uma tentativa de “brincar de Deus”, pelo grau de realidade das peças, e ainda como hobby ou um “brincar de boneca”, por outros ainda mais críticos, que não a levam a sério.
Eva nos apresenta toda a sua vida, por partes, do presente, em meio a sua linda vida, regada de sorrisos, segurança, harmonia e amor, um ambiente de clima sempre aconchegante e caloroso - digno de um sonho - seja pelas lindas garotas gêmeas que hoje são suas filhas, pelo seu lindo esposo, advogado em ascensão, ou por como ela desejou essa paz desde que se entende por gente, nos entregando fragmentos de um passado tenso, e a dúvida se existirá um futuro.
Pouco a pouco a paz do ambiente é impactada quando ao descobrir uma gravidez, não tão inesperada assim, seus passos começam a ser pensados, e sua rotina ganha outro significado, no dividir de tarefas, a interrupção de seus momentos só para si, e principalmente no crescimento de um ser, que está tomando seu lugar, começando pelo seu corpo, antes mesmo de dar o primeiro sopro de vida. Mal sabe que o caos está apenas começando, uma vez que o “parasita” só traria mais trabalho, mais separação, mais dúvidas e marcaria o fim.
Lucas, o novo componente da família, apresenta, certo dia, uma mancha em seu corpo, sugerindo maus tratos, e um emaranhado de desconfiança é criado dentro daquele apartamento de 120m², que progressivamente aparenta ser um lugar menor e menor, com mais suspeitas, dúvidas e uma completa paranoia a cerca da mãe, intitulada como negligente e de passado suspeito, e por vezes do pai, ausente e impaciente.
Uma vida antes perfeita começa a desmoronar com tantos problemas acontecendo de uma vez, novos e antigos, sendo trazido à superfície pelas desconfianças, o enclausuramento daquele condomínio que mais julga e exclui do que ajuda, nos é apresentado várias críticas sociais relacionadas ao capital aquisitivo, de como a imagem é mais bem vista do que o interior, do que as relações e de como algo pode explodir, em um piscar de olhos, e a cultura do cancelamento pode destruir a vida de uma pessoa, da noite pro dia, devido a falta de empatia e confiança entre as partes, sejam ela de um grupo simples, entre amigos, a de um ínfimo, como a de uma família feliz.
O jogo psicológico existente no livro parece beber de muitas fontes, uma delas seria Precisamos falar sobre o Kevin, de Lionel Shriver, e arrisco, Garota exemplar, de Gillian Flynn. Ao passo que cada leitor tem sua própria linha de raciocínio e pouco nos é entregue ao longo do tempo, logo, pistas do real desenrolar e, principalmente, do plot twist final, acabamos por utilizar do que nos é comum, conhecido por leituras anteriores, do Raphael ou de outros autores. Em compensação, o final aparenta ter sido simplesmente encaixado, com uma escrita contínua, seguida de uma colagem de fatos que deveriam fazer sentido, mas que na minha opinião não fazem.
O livro é uma ótima porta de entrada ao gênero do terror psicológico, garantindo um processo divertido de ansiedade na curiosidade com o desenrolar da trama. Para o leitor mais experiente, pode render um caminhar intrigante, mas uma quebra de expectativas no momento final da leitura. Porém, nem por isso deixo de recomendá-lo, afinal, um livro não é bom apenas pelo seu final, arrisco dizer que o ato de prender o leitor até o fim é, sim, uma capacidade considerada, e estaria mentindo se dissesse que Uma familia feliz não é um desses livros.
JP Siqueira é um leitor eclético, fascinado por suspense, horror e terror e que tem como um de seus autores preferidos Edgar Allan Poe. Graduando de Pedagogia (UNEB) e Pós-graduando em Neurociência (Faculeste). Tem aspirações literárias dentro de uma “bolha psicológica”, se permitindo ir além, trabalhando a psicologia nas ações e o comportamento na mente do ser humano, e, por isso, o grotesco, o que foge do “comum” me chama tanta atenção.