No rádio a música toca
Nano desperta, toma café com grãos sabor canela, acompanhado de torradas de cebola com requeijão. Mais café, puro. O líquido desce, fervendo as cordas vocais. Abre a boca, não sai fumaça. Dentro de si, caldeirão.
Solfeja a música que toca no rádio:
“Milhões de diabinhos martelando
Um pobre coração que agonizando
Já não podia mais de tanta dor.”
Lupicínio Rodrigues lembra o pai. Aumenta o volume, fecha os olhos, pensa nas brincadeiras de infância. Alguém o chama: “Nano, Nano, Nano.” Levanta, vai até a porta, não tem ninguém. Volta pra cozinha, lembra-se do remédio. Uma semana sem ele. Segura a caixa. Faltam dois ou cinco comprimidos? Dúvida. A olanzapina desce no seco.
O rádio para de tocar. Quem desligou? Pressiona o botão, nada. Acende e apaga a luz. Funciona. Espera um instante. Um chiado forte, estridente, invade seus ouvidos. Encolhe-se no chão, as mãos tentando abafar. Agulhas desfiam os tímpanos. O som cessa. Levanta-se, segura o rádio, aperta o botão. Quinze vezes, aperta. O botão se rompe, o dedo invade o interior do rádio. Sangue por todo lado.
“Mãeeee, vem me ajudar.” Nenhuma resposta. “Pedroooo, corre aqui.” Silêncio. Sangue, gotas, poças, sangue. Na casa, todos dormem; ele sangra. Com esforço, retira o dedo do rádio, a falange distal despedaçada. Dor, muita dor.“Nano, Nano, Nano.” Uma criança chama seu nome. Deve estar escondida. Gargalhadas. Três crianças rindo. O som vem de trás da parede.
Encosta a concha das mãos na parede, ouvido em alerta. “Entra, Nano. Vamos brincar.” Faz força pra identificar a voz, as três crianças. Risos. A roupa vai ficando mais vermelha. A parede o engole. Preso na parede que o comprime, tenta sair. Empurra, faz força. Os outros dedos começam a quebrar, os ossos rompem a pele.
Coloca a mão despedaçada na boca, aperta pra suportar a dor. Mastiga os ossos. Falanges quebradiças em seus dentes. Dor. Desmaio.
Acorda no chão. O que sobrou da mão ainda sangra. Cospe. Seus dentes em cacos dançam ao redor do seu corpo. Uma ciranda de dentes dança no ritmo da dor, das gargalhadas das crianças.
Arrasta-se até o quarto do irmão. Uma lama escura e densa escorre nas paredes. Borbulha. Um odor forte queima o nariz, os olhos ardem. Podridão. O quarto coberto de larvas, escuras, claras, dançando ao som das gargalhadas infantis. Vozes. “Entra, sai, fecha. Morte, amanhã, hoje, agora” – gritam. Moscas invadem sua boca. Cospe, tosse, se engasga. Na cama, o irmão com o corpo envolto em larvas, olhos esbugalhados, estende os braços e fala: “Acabe com esse sofrimento. Me ajude, por favor.”
Com dificuldade, com a mão que restou, pega a pedra que segura a porta. As larvas comem a mão despedaçada. Grita. Em agonia, tenta enxergar o irmão, que virou coisa. Não fala, geme. Com a pedra, esmaga o crânio da coisa. Não era seu irmão, era bicho. Bate cento e oitenta vezes, até não restar larva, crânio, cérebro.
Olha pra mesa de estudos do irmão, um prato com meia laranja cortada, tomada por larvas, e uma faca. Enxerga a solução. Pega a faca, desliza-a no pescoço e cai. Se despede da vida, em larvas e sangue.
A mãe vai acordar o filho mais novo pra ir à escola. Abre a porta e se depara com ele, ensanguentado e a cabeça esmagada, e com o mais velho, garganta cortada, flutuando em seu próprio sangue.
CLARISSA MOURA (1987, João Pessoa-PB).
Advogada, escritora, membro do Clube do Conto da Paraíba.
Atua no coletivo Mulherio das Letras-PB.
Publicou em diversas antologias. Instagram: @clarissagmoura