31 de julho de 2024

São Amaranto, de Isabor Quintiere

Nas suas últimas horas febris, Vô Domênico foi acometido por alucinações em que dizia que a terra de São Amaranto nunca existiu.

São Amaranto é um pequeno país sul-americano em formato de peixe, colonizado por portugueses, cortado por rios, fazendo divisa com a Bolívia, o Peru e o Brasil e, até recentemente, governado por um ditador admirador de Salazar, em cuja bandeira se destaca o amaranto. Nunca ouviu falar? O que você andava fazendo nas aulas de Geografia? Pois bem, esse é o primeiro impacto de Desidério, protagonista do romance, ao chegar a Manaus enquanto exilado político. Ele descobre que a alucinação do avô (que abre o romance) estava mais para premonição.

A partir dessa descoberta, Desidério se vê obrigado a lidar com as memórias de 30 anos vividos em São Amaranto postas em franco colisão com a perda e a loucura. Vamos mergulhando na aflição do personagem, nos seus medos e, sobretudo, no esfacelamento de sua identidade.

O romance recorre a um recurso interessante para demarcar a passagem do tempo, a "mudança" de nome do protagonista: Desi, quando menino; Desidério, na vida adulta; Seu Desinho, quando idoso.

Desi guarda a inocência de quem vive sobre a ditadura e não sabe. Nesse sentido, dialoga bem como obras como Kramp, da chilena María José Ferrada, e Space Invaders, da também chilena Nona Fernandez, haja vista esse lugar da infância sob o signo da violência. Desi vive a felicidade de estar entre com os irmãos que levará por toda vida, como uma presença constante e contínua que solidifica a ausência, a saudade, e funciona como marco de sua identidade e pertencimento.

Desidério enfrenta o exílio numa outra ditadura. Foge de seu país, sob ameaça do regime, com intuito de usar de sua profissão de jornalista para denunciar os abusos cometidos em sua terra. Contudo, vem a um país sob ditadura, inapto a lhe oferecer a liberdade que tanto almeja, e com uma recepção pouco ou nada calorosa.

Seus primeiros meses são de franco declínio, desnuda de quem foi, mergulhado num limbo, sobretudo, ao perceber que para o porvir o passado importa. Não há como trilhar uma estrada sem um caminho de volta, e Desidério navega num mar de incertezas (Existe mesmo São Amaranto? Edésio e Yolando são invenções? Se são, quem são essas pessoas na fotografia que carrega? E de onde veio esse sotaque e essa forma peculiar de falar o português? Quem sou?).

A perda da pátria traz essa sensação de luto, essa estranha sensação de perder o chão, o prumo, de se encontrar em queda livre, completamente solto, sem amparo, sem rede de proteção. Assusta por ser tão humana. Essa relação entre exílio e luto me lembrou O quarto alemão, da argentina Carla Maliandi, cuja protagonista se vê de volta ao exílio após a morte do pai, exilado na Alemanha durante a ditadura argentina. O exílio é desnorteio, é luto, é a incerteza como única garantia da própria existência. Desidério amarga essa insegurança de quem perdeu a pátria, a mátria e a frátia, e não se reconhece nessa outra terra, um fantasma vagando em busca de resolução.

Seu Desinho desfruta da calma de quem já reconheceu não haver tempo para mudar o que não mais pode ser mudado. Acomoda-se em Solânea, uma pequena cidade do brejo paraibano, de onde rememora os anos de exílio e nos conta a sua história. É ele, Seu Desinho, o narrador. Com a serenidade de quem entendeu o dever de seguir, vai costurando os dias, disfarçando a dúvida com a convicção fingida de que os breves primeiros anos de sua vida não pertencem a São Amaranto.

Seu Desinho é amado, e embora não buscasse construir laços, foi vencido pela generosidade implacável das pequenas cidades nordestinas. Apesar de ter vivido mais tempo no Brasil, não consegue se desapegar, desfazer o laço que o prende a São Amaranto de sua família, de seus pais, vitimados pela ditadura, de seu Vô Domênico, de seus irmãos, Edésio e Yolanda. E mesmo que todos digam e os mapas não mostrem, lá no fundo, deseja regressar ao lar.

Não é aleatória a citação a obras de nossas hermanas sul-americanas, Isabor abraça a latinidade, tão negligenciada por nós brasileiros, ao criar um outro país lusofalante na América do Sul, cuja herança portuguesa se mistura a essa outra andina, de forma a revelar que estamos irmanados, compartilhando sonhos de liberdade, propseridade e felicidade, bem como mazelas socioeconômicas e fragilidades políticas. Nesse sentido, cria um romance essencialmente latino, e, por isso, essencialmente brasileiro.

Junta-se ao coro das escritoras de sua geração, daqui e de acolá, que pintam as dores do autoritarismo sobre a tela da particularidade e fragilidade humana. Cria uma obra necessária para nos lembrar que a história do fascismo não é apenas uma página na história política de um país, mas um séquito de histórias pessoais e dramas familiares, permeado por toturas, mortes. adoecimentos e desaparecimentos, com feridas abertas e cicatrizes profundas que bradam como cirenes aquilo que jamais pode ser esquecido.

São Amaranto não é apenas um país em formato de peixe, colonizado por portugueses, cortado por rios, fazendo divisa com a Bolívia, o Peru e o Brasil e, até recentemente, governado por um ditador admirador de Salazar, em cuja bandeira se destaca o amaranto. São Amaranto é o Brasil, a Bolívia, o Peru, a Colômbia, o Chile, a Argentina, o Equador, o Uruguai, o Paraguai. É um pouco de todos nós, porque somos, em grande medida, marcados pelo chão em que pisamos, pelo compartilhamento de dores comuns e dessa insitência latino-amaericana na esperança que nos faz resistir e insistir na vida.

Recomendadíssimo.