Pelas mãos do meu avô
Era noite. E na mesa da sala sentava eu e uma garrafa de cerveja.
Ao olhar para as minhas mãos, notei que a pele, logo acima do polegar, estava enrugada. Uma pele fina, um pouco desidratada e craquelada começava a aparecer. Eu conseguia perceber as marcas que o tempo vai imprimindo na gente.
Então, me lembrei das mãos do meu avô. Sempre achei que as minhas mãos se pareciam com as dele. Não sei bem porquê. Mas desde menino tenho comigo esse pensamento. Elas também tinham marcas e manchas da vida na pele fina.
Fechei, levemente, a mão em forma concha, como se estivesse me preparando para uma partida de bafo. Ele costumava fazer esse gesto enquanto esticava o braço apontando a barriga dos netos. Sempre tentei esquivar, mas era em vão. Ele sempre encontrava uma forma de cutucar nossas barrigas. Fitei o gesto por um momento, e enquanto reproduzia, fiz o movimento trêmulo, típico das pessoas mais velhas. E percebi, naquele instante, que já não era mais a minha mão que eu contemplava. Mas, sim, a mão do meu avô.
E de repente a sua lembrança inundou o ambiente. E o encanto dos seus olhos agora brilhavam nos meus. Me ajeitei na cadeira como ele fazia. E agora estou, no silêncio da sala, encenando sua postura. Cruzo a perna direita sobre a esquerda e curvo um pouco as costas. E deste ponto em diante não sou eu quem senta à mesa.
Eu havia me transformado no meu avô. Homem douto e elegante. Austero, porém amável. Que no peito não cabia o coração. Que tinha o cuidado de dividir cada e qualquer coisa com quem gostasse. Tive atenção ao reproduzir cada movimento, cada trejeito, cada pormenor.
Busquei o copo com o mesmo gesto que ele costumava fazer. Sacolejei a garrafa da mesma maneira, e completei o copo, erguendo um pouco mais alto a garrafa, com mais espuma do que cerveja. A espuma branca preencheu o copo. Ao tomar um gole, pigarreio ajeitando a garganta enquanto a espuma fica no bigode. E pousando a mão na perna, suspiro em paz. E em paz contemplo a sala vazia. E em paz me sento à mesa. Eu e uma garrafa de cerveja. E tento ver o mundo como ele via. Tudo isso, pelas mãos do meu avô.
Alberto Lacerda é nascido em Nanuque, Minas Gerais, em novembro de 1978, Alberto Lacerda é poeta, cronista e contista. Geógrafo de formação, cursou faculdade em Belo Horizonte, onde viveu por 14 anos. Em 2014 mudou-se para Salvador, BA e desde então, passou a ser publicado em diversas coletâneas e revistas literárias. Desde 2016 suas crônicas são publicadas no jornal Em Tempo, em sua cidade natal. Em 2017, foi selecionado no Prêmio Sarau Brasil – Novos Poetas, pela Editora Vivara. Teve a crônica “Senhor” publicada na Edição Especial da Revista Contos e Letras na Bienal do Rio de Janeiro em 2017 pela Editora Illuminare. Em 2020 foi vencedor de dois prêmios literários com o seu primeiro livro Crônicas do Cotidiano. Melhor livro, na categoria crônicas, na 2ª edição do Prêmio Book Brasil e na 5ª edição do Prêmio Brasil Entre Palavras. Os prêmios tiveram como objetivo o incentivo e a divulgação de informações que promovessem e valorizassem a literatura brasileira, seus diferentes gêneros literários e seus autores. Em 2021 foi selecionado para a antologia de Poesia Brasileira Contemporânea (editora Chiado Books) com a poesia “Depois da Hora de Dormir”. Nesse mesmo ano lançou seu segundo livro de crônicas Parte de Mim. Hoje mora no Rio de Janeiro e tenta conciliar o trabalho, a escrita e a paternidade.
*Ilustração retirada de https://encurtador.com.br/iBYUC