11 de julho de 2024

O homem que morreu ouvindo Beck

Um conto de Matheus Borges

O homem que morreu ouvindo Beck morreu às duas horas da manhã de uma quinta-feira no mês de agosto. Ele fechou a porta do forno de micro-ondas, a fim de aquecer a última fatia de uma pizza que pedira na noite anterior, quando dois amigos estiveram em sua casa. O homem que morreu ouvindo Beck tinha dois amigos, seus dois únicos amigos, e eles foram comer pizza na sua casa na noite anterior. Eles beberam três garrafas de vinho, jogaram videogame e conversaram sobre suas vidas, incluindo minúcias do cotidiano, como, por exemplo, a que filmes assistiram recentemente e que restaurantes visitaram nas últimas duas semanas. Ouviram um álbum do Beck e naquela noite o homem não morreu.

O homem que morreu ouvindo Beck vestia calça de abrigo e moletom cinza mescla, peças que tinha há cerca de cinco anos, roupas confortáveis para momentos de ócio e noites frias. Na noite em que o homem morreu ouvindo Beck, fazia sete graus e uma chuva fina ricocheteava do lado de fora, na caixa do ar-condicionado. Depois que o forno de micro-ondas emitiu três breves apitos, indicando o fim do minuto que levou para aquecer a fatia de pizza, o homem que morreu ouvindo Beck se aproximou devagar e com muito cuidado, pois a água da chuva entrara pela janela da cozinha e ele teve medo de escorregar. O cuidado tido pelo homem que morreu ouvindo Beck foi recompensado e ele não escorregou e não morreu batendo a cabeça na quina da pia.

O homem que morreu ouvindo Beck tomou a fatia requentada em suas mãos, satisfeito por não ter comido mais do que deveria na noite anterior, quando já antecipava a preguiça do dia seguinte, em que poderia contar ao menos com os restos da pizza para satisfazer sua fome. Tendo fácil acesso naquele momento, bem como ao longo de sua breve existência inteira, a esse alimento, entre tantos outros, incluindo legumes frescos armazenados em sua geladeira, o homem que morreu ouvindo Beck não morreu de inanição.

O homem que morreu ouvindo Beck tinha trinta anos no momento em que veio a óbito. Sua, vida ceifada pelo azar, era um reservatório inexplorado de potencialidades. Levou consigo seus muitos futuros no momento em que morreu ouvindo Beck. Quantas coisas poderia vir a fazer nos próximos dias ou meses, sabe-se lá que tipo de pessoa viria a se tornar em uma década ou duas. Se morreu naquela noite gelada, não foi uma decisão sua. Tampouco seria escolha sua ouvir Beck no momento em que morresse. Morreu ouvindo Beck porque ouvia Beck quase todos os dias, como no exemplo da noite anterior, e o dia em que morrera não havia se mostrado nem um pouco diferente. Foi um dia como todos os outros dias, talvez um tanto mais apático em função da ressaca que sentiu ao acordar naquela manhã. Em nenhum momento das últimas vinte e quatro horas, no entanto, o homem que morreu ouvindo Beck imaginou que estaria morto às duas da madrugada em ponto. 

Se soubesse que morreria naquela noite, é possível que até mesmo escolhesse não ouvir Beck enquanto morresse. É possível que escolhesse ouvir algo que o colocasse mais próximo do momento fatal, ou algo que o sublimasse desse processo doloroso, ainda que tão banal, de abandonar a própria vida. O homem que morreu ouvindo Beck nunca chegou a pensar no que gostaria de ouvir no instante de sua morte. Se houvesse dedicado tempo ao assunto, provavelmente concluiria que o silêncio é preferível a qualquer ruído numa ocasião dessas. Mas ele não teve tempo para pensar em nada disso.

O homem que morreu ouvindo Beck caminhou até a sala e se sentou no sofá. O homem que morreu ouvindo Beck já estava sentado quando mordeu a fatia de pizza que tinha aquecido por um minuto no forno de micro-ondas. Ele deu a mordida, sua última mordida. Primeiro, o molho gorduroso se espalhou em seus lábios, deslizou nos fios do bigode. Depois, sentiu queimar o céu da boca no momento em que abocanhou o queijo derretido. Automaticamente, seus olhos se encheram de lágrimas. Tinha esquentado tempo demais.

“Trinta segundos teriam sido suficientes”, foi o que ele pensou. O que ele pensou numa das últimas vezes em que teve um pensamento. 

De tão quente que estava a pizza, o homem que morreu ouvindo Beck soprou vapor pela boca, sacudindo a mão direita em frente ao rosto. Mastigou uma, duas, três vezes com muito cuidado, de modo a evitar que a pizza também queimasse suas gengivas. Mastigado o alimento e reduzido a uma pasta, o homem que morreu ouvindo Beck engoliu sem problemas e não morreu engasgado. Apoiou o prato com a pizza no braço do sofá e procurou o controle remoto no meio das almofadas. Apertou o play, começou a ouvir Beck e morreu.

 

Matheus Borges é mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É autor do romance Mil Placebos (Uboro Lopes, 2022), vencedor do Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica e finalista do Prêmio Açorianos de Literatura. Como roteirista, assinou o roteiro do longa- metragem A Colmeia (2019). Colaborou com artigos para publicações diversas como Zero Hora, PublishNews e Le Monde Diplomatique. Seu segundo romance, intitulado Frankito em Chamas, será publicado pela editora Todavia.