Virgínia Mordida, romance de Jeovanna Vieira
Não é incomum ouvir quem acredite que a violência contra a mulher resulta de condições econômicas desfavoráveis ou de lares desestruturados, escassos em afetividade, acolhimento e compreensão. Ledo engano. A violência contra a mulher é sistêmica, fruto de uma estrutura patriarcal que coloca a mulher em lugar secundário (segundo sexo, pessoa relativamente incapaz, menos inteligente etc.). E, se em alguma medida, os processos emancipatórios quebraram grilhões, noutra medida, não chegou, ainda, a romper com esse sistema de dominação e opressão masculinas. É isso que lemos em Virgínia Mordida, romance de estreia da capixaba Jeovanna Vieira.
O romance narra a história do relacionamente entre Virgínia e Henrí, a partir da perspectiva dela enquanto narradora. Ela, uma advogada bem-sucedida, uma mulher negra orgulhosa de sua ancestralidade e matrilinearidade; ele, uma ex-criança famosa na Argentina em razão dos abusos sofridos por sua mãe, um ator frustrado e sem talento, residente há mais de uma década no Brasil.
O que os relacionamentos de abuso de confiança têm em comum é: os manipuladores são adoráveis.
Virgínia conhece Henrí numa festa e, em pouco tempo, já estão envolvidos a ponto de se mudar para o sobrado em que vivia. A partir daí, começa um jogo marcado pela personalidade narcisista de Henrí que começa a afastar as pessoas que se importam com Virgínia, como as amigas, P. e Dóris, a família, pouco a pouco, vulnerabilizando essa mulher forte em muitos aspectos, provedora da casa e da relação. O feitiço, se é que pode assim definir, que o argentino exerce sobre Virgínia revela tanto de seu narcisismo quanto das carências e ausências de Virgínia, tragada a essa tragédia, que, apesar de protagonista, tem de conviver com um coadjuvante desejoso de ter para si o centro do palco. Tudo deve ser sobre Henrí.
Em um sentido simbólico, Henrí é a encarnação do patriarcado, antagonizado pela construção simbólica da protagonista, cuja ênfase está na ausência paterna e na força de sua ancestralidade matrilinear (v. as Beneditas, a avó, a mãe) e na rede apoio feminina, representada pelas amigas Penélope, idenpendente, segura de si e imponente, mesmo com o nanismo; e Dóris, que abre mão da carreira para construir uma família ao lado de sua companheira. Com exceção do avô da protagonista, todas as figuras masculinas são postas na chave de antagonistas. Em certa medida, há um quê de unilateralidade nas personagens, postas na chave do sagrado feminino e do profano masculino. Isso me soa problemático ante a simplificação que produz. Contudo, as personagens possuem seu charme e encanto, despertam emoções diversas: Penélope, a P., é, sem sombra de dúvidas, a personagem mais cativante; Henrí é, de fato, detestável e crível - todo mundo, infelizmente, já esbarrou com um Henrí por aí.
Penélope desconsiderava Henrí como humano, o que na prática era bem mais cruel que odiar.
Henrí tem um histórico de relacionamentos abusisvos, que, apesar dos alertas, é ignorado por Virgínia. O desejo de ser amada, viver um relacionamento estável e amoroso, a faz vulnerabilizar aquele homem e relativizar suas ações. As pequenas violências são justificadas como necessidade de ser amado, postas como racismo reverso, fundamentadas pela aversão das amigas e familiares, e nunca por desvios ou falhas de caráter. A culpa é de Virgínia, da família de Virgínia, das amigas de Virgínia, de sua ambição, seu trabalho, sua ancestralidade, sua fé, seus costumes. O isolamento, o medo, a insegurança passa a ser a regra. Virgínia desconhece suas origens, seu alicerce, sua memória, mesmo sob o alerta da mãe:
Minha mãe vive falando que temos de enfeitar o corredor da memória para lembrar que somos livres, senhoras e senhores dos nossos oris, com a permissão dos nossos orixás.
A sombra projetada por Henrí sobre o panteão de Virgínia ofusca a saída que ela mesmo representa para longe das agressões e abusos vividos. Há uma relação de dependência e de destruição pessoal a ponto de não perceber ser ela o centro e motor desse relacionamento, que é Henrí quem depende materialmente dela. Nenhuma violência psicológica, sexual e/ou física começa com um gesto brusco, é sempre com uma gentileza, com uma boa noite de sexo, com elogios jocosos e pretenciosos, quais parecem ceder espaço, dar protagonismo e evidência nesse lugar íntimo e privado que deve ser suficiente para que nada ou ninguém mais importe.
Em alguma medida, o romance aponta para a cilada do amor romântico, causa remota dos abusos. Essa necessidade de se manter e existir em torno de um amor que marque, se eternize em ações, apesar das dores e turbulências, como algo que cabe em si e basta a todos, a ponto de se encapsular num mundo de beleza, felicidade e êxtase. A idealização do amor talvez explique as razões pelas quais Virgínia, apesar de quem é, acabe caindo na cilada de Henrí.
O romance se destaca pela força e atualidade do tema. Na composição, é feito de capítulos breves, apresentando o passado de Virgínia para criar um constraste entre quem ela é e quem Henrí é; entre seus relacionamentos anteriores e o relacionamento com Henrí; na construção de sua rede de apoio e na ênfase em seus erros e acertos, aproximações e distanciamentos. Em termos de escrita, é direto, objetivo, sem firulas ou arroubos poéticos e estéticos. As personagens são verossímeis, mas um pouco simplificados pela dicotomia bons e maus, sem apresentar certas nuances ou contradições que poderiam agregar outras camadas de reflexão e construção.
Um bom romance de estreia, de leitura oportuna e agradável. Recomendo.