#48 O cordeiro e seus pecados | Entrevista com Milena Martins
Resenha
“estou nua e disso não me envergonho”
É com esse verso que se finaliza o primeiro poema do livro de Milena Martins Moura, chamado o cordeiro e os pecados dividindo o pão.
evangelho segundo o pecador
me quero aberta em cálice e vinho e pão
fenda rasgada de ritoshabito deitado a fogueira
onde abrasam as peles récem-expostasa carne viva pulsa porque viva
porque crua porque fera e primeira mulher
serpente e desfruteme quero imersa corpo inteiro no indevido
lambendo o caminho desviado
com a mesma lingua
dos cânticoso sacro e o santo
molhados da espera
com a sede dos abstemios
e dos crédulos em desgraçae eu graal sacrílego
estou nua e disso nao me envergonho
E no fim já está o início, seja sobre o início do poema, do livro ou da humanidade, isso porque se estabelece neste ponto uma relação com a criação do mundo como o vemos hoje pelo viés cristão. Não é improvável que possamos afirmar que a voz dessa sujeita-lírica seja de Eva. Ela é a primeira pecadora perante a sociedade machista e misógina. Seria ela quem poderia afirmar que “a carne viva pulsa porque viva / porque crua porque fera e primeira mulher” e da qual, portanto a serpente desfrutaria.
Esse desfrute, digamos assim, deste ser quase mitológico, esta serpente que a morde pode ser tido como um dos elementos basilares para que compreendamos um pouco mais do que a voz presente no livro instaura. A serpente, em relação com o pecado, é aquela que morde, a mesma que fere será a mesma que dará a liberdade a essa sujeita-lírica que não irá se submeter a nenhum julgamento masculino e que, por si só, já representará uma eterna luta para sua própria sobrevivência.
Em outro poema, chamado Πύθων (píton), teremos a primeira estrofe construída assim:
é com certa frequência
pela manhã
que eu me devoro
O ouroboros aí se apresenta. Por meio da serpente – que para o cristianismo carrega consigo o significado da perdição –, teremos o conceito da eternidade surgindo para nos lembrar que há uma luta diária pela voz dessa sujeita-lírica, a de que não irá se entregar às fogueiras, ou, melhor do que isso, apenas uma camada de si será entregue para ludibriar àqueles que desejam o seu pior.
Se voltarmos ao primeiro poema, a voz informa que deixará habitando a fogueira apenas as “peles recém-expostas”, ou seja, é como se nos dissesse que aquela que conhecíamos já não está mais aqui. A inocência se perdeu, e pelo bem da que dita. Aqueles que a desejaram matar, imolar, não conseguiram retirar nada mais do que uma camada, já velha e esquecida por ela própria. A mulher e serpente são uma só – o uno significa. E com isso, a mudança a inocente se metamorfoseia e se liberta.
Diante da serpente, outros atos e elementos expõem a arquitetura do livro. A voz da sujeita-lírica que vamos conhecendo se mostra forte, combatente, apesar de que, em alguns momentos, poderá ser vista como um cordeiro, que sofre ao ver outros corpos sendo levado para o sacrifício. No poema que dá título ao livro, ela afirma “estou aqui”, mais de uma vez, para afirmar que sua presença não irá ser sentenciada. Ela estará presente “testemunhando o início / de mais um sopro de vida ameaçado” enquanto “o sangue das imolas” estará “pingando nos batentes”, enquanto ela estará “ainda inteira” “fingindo a firmeza / das ruínas” “sendo viva e apenas à espera”.
O cordeiro, ao invés da serpente, é, também, aquele que está representado na capa do livro, como disse a poeta, quase como um pet, como alguém que não sabe que está próximo do seu fim e que recebe um carinho. A escolha me parece ser muito boa, uma vez que a poeta afirma que a “imagem do cordeiro”, em seu livro, “é trabalhado como uma imagem de uma mulher que não se deixa abater, não se deixa imolar”. E que “o primeiro poema é uma voz feminina que não se permite ser jogada na fogueira”.
O livro de Milena Martins faz nascer uma sujeita-lírica que representa muitas outras vozes, não apenas de sua geração, mas, talvez, de milhares de mulheres que usam a voz para se erguer contra o que a sociedade poderia ditar, contra o que uma religião poderia querer, como se essa voz tivesse de ser apenas uma figurante de sua própria vida. Na verdade, o que ela deseja é não ser mais vítima, como ficará mais que evidente ao fim do livro, ao fim do último poema:
a vítima
que era eu
morreu
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Milena Martins Moura é poeta, editora e tradutora. É autora dos livros Promessa Vazia (Multifoco, 2011), Os Oráculos dos meus Óculos (Multifoco, 2014) e A Orquestra dos Inocentes Condenados (Primata, 2021), bem como da plaquete Banquete dos Séculos (edição da autora, 2021). É editora da revista cassandra, de seu selo erótico Héstia e da Macabéa Edições. É mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Também integra a equipe de poetas do portal Fazia Poesia e é colunista da revista Tamarina. Tem poemas e contos em portais e revistas como Jornal RelevO, Uso, Torquato, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Lavoura, Zine Marítimas, Laudelinas, La Loba, Mormaço, Caliban, Desvario, toró, Arara, Kuruma’tá, Aboio, Arribação, Totem Pagu, Granuja (México) e Kametsa (Peru). O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão (2023) é seu primeiro livro pela Aboio.
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Créditos
Apresentação e roteiro: Nathan Matos e Ivandro Menezes
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Edição: Nathan Matos
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