À espera dos bárbaros, J. M. Coetzee
Há em toda espera uma constante: o tempo. E aqui, em À espera dos bárbaros, romance do sul-africano J. M. Coetzee, com tradução de José Rubens Siqueira, é o tempo das estações, o tempo das transformações e mudanças, tão simbólico quanto material, tão alheio quanto nosso.
Num recanto esquecido de um vasto e impiedoso império, um magistrado civil segue sua rotina a serviço da lei e da Justiça, numa relação equilibrada e pacífica, até a chegada do Coronel Joll. Disposto a interrogar os bárbaros, um povo nômade e pacífico que vive nas cercanias do forte, a quem elegeu por inimigo e ameaça ao império, Joll empreenderá uma campanha hostil e agressiva, torturando idosos, mulheres e crianças, tudo sob protestos do magistrado.
Dessa primeira empreitada, uma mulher bárbara é deixada para trás, quase totalmente cega e com os pés deformados após tortura. O magistrado, que questionou a moralidade das ações do coronel, toma a mulher a seus cuidados e desenvolve com ela uma estranha relação de fascinação, desejo e impotência.
Essa tensão entre as ações dos militares e as ações pessoais e íntimas mantém-se constante no romance, permeando as elucubrações de seu protagonista e narrador, dividido entre a serenidade e solidez de seus valores e as paixões a que sucumbe. Além disso, a idade é posta como um balizador de suas ações, destacando a contradição existente entre o frescor de seus sentimentos e o peso que suas rugas dão em sabedoria e comedimento exigidos ou tidos por inatos a um homem maduro e/ou em sua posição de magistrado. A ideia do justo vaga como assombração a atormentá-lo.
Coetzee, com sutileza e inteligência, conduz a questão fundamental sobre quem é o "civilizado" e quem são os "bárbaros". As ações colonialistas são marcadas pela arrogância ocidental, por essa crença na superioridade moral, intelectual e bélica, apontado a tudo que não é espelho a pecha de inferioridade moral, intelectual e bélica. A disputa entre esses mundos e a busca para subjugar um ao outro atesta a própria falibilidade de nossa civilização, quer na nossa incapacidade de apreender outros códigos morais; com outras formas de lidar e viver com o mundo que nos cerca; e, ainda, de reconhecer no outro a força capaz de nos derrotar.
Cabe destacar a artesania de Coetzee ao se apropriar de grandes monumentos literários para extrair de seus ecos e estruturas o necessário para a sua criação. Aqui temos, desde o título, À espera dos bárbaros, menção ao poema de mesmo nome do grego Konstantínos Kaváfis, o romance O deserto dos tártaros, clássico de Dino Buzzati, certamente um dos melhores romances já escritos, e, sem dúvidas, em Kafka, mais precisamente, no conto A Grande Muralha da China. Reconhecemos cada uma e as desconhecemos. Coetzee consegue tomá-las como referência, mas não enquanto aceno, é algo mais próximo de uma reencarnação, há ecos distantes só que numa nova vida. Assim, faz de cada página uma obra coletiva, tal qual as palavras que numa boca pode soar promíscua e pobre e noutra profícua e densa. E nisso reside sua maestria.
Vale cada página.