23 de janeiro de 2024

Poesia é difícil

I. Recomeços

Estou lendo a Ilíada. Ou relendo. A última vez que habitei esse calhamaço foi em 2007, no curso de Letras da PUC Minas. Eu não entendia quase nada daqueles mais de 15 mil versos, tropeçava em todos os hipérbatos – e sofria, tanto com o meu professor (preguiçoso) quanto com o tradutor, Odorico Mendes (nada preguiçoso).
As quase mil páginas épicas (re)começaram pesadas para mim. Mas agora, passado o Canto II, eu estou apreciando muito mais a leitura. Para mitigar as dificuldades, recorro também à tradução do Frederico Lourenço – mais prosaica, mais direta e, ao mesmo tempo, com rima e ritmo belíssimos. Arrisquei essa dupla leitura por acaso e estou gostando do resultado. Leio cena a cena, sempre do Odorico ao Lourenço. Ou seja, estou lendo duas versões das aventuras daqueles homens guerreiros, valorosos e cuja masculinidade é construída sobre a carne das mulheres, como bem nos lembra Luiza Romão em Também guardamos pedras aqui.

E assim comecei uma das minhas metas de 2024: ler e/ou reler os canônicos ocidentais.


II. Lembranças

Fiz uma boa dívida para comprar a Ilíada: eu era estudante bolsista, o livro era caro, num trabalho bonito da Ateliê Editorial. Gastei o dinheiro que não tinha, mas valeu a pena: a obra, fixada e anotada por Sálvio Nienkötter, além de bonita, está bem estruturada, com uma nota para cada verso.

A segunda e última meta para o Ano Novo (complementar à primeira) é ler mais poesia. Muito mais mesmo: enfiar poesia não só na minha vida, mas também na minha carne. Comecei com a Ilíada e assim matei dois coelhos numa cajadada só. O bom é que o coelho aqui é apenas metafórico.

Outra lembrança que esses objetivos de leitura me despertaram: a forte resistência das pessoas à poesia, cujo sintoma aparece em frases como “Não leio poesia porque é difícil”, “porque não consigo entrar”, “porque não entendo nada do que o autor quer dizer” ou (a que mais me dói) “porque não gosto”. Relendo a Ilíada, até dou razão a essas justificativas. Obviamente, o problema não é dessas pessoas, mas da representação que a nossa cultura fez e faz sobre a poesia (sobretudo na escola, mas não entrarei nesse mérito ainda).

Por outro lado, sou poeta. E, seja como for, sinto que preciso dissuadir essas impressões equivocadas e por vezes justificadas. Preciso dizer e convencer as pessoas de que a poesia é uma casa possível, onde a vida cabe inteira e desdobrável.

III. Poesia é difícil

Jorge Luís Borges dizia que a poesia pode ser definida pelo seu caráter de expressão: cada palavra que compõe um poema tem a função de expressar, representar, deslumbrar e – principalmente – revelar algo que já estava em nós: “Cuando yo escribo, tengo la sensación de que eso preexiste”, disse Borges. Acessar a poesia significa, portanto, tocar em algo dentro de nós, retornar ao que havíamos “esquecido”.

Tenho a sensação de que, nos últimos anos, lemos e escrevemos mais poesia. Mas a resistência a esse gênero literário ainda continua na maioria das pessoas e penso que o problema talvez resida em dois fatores principais (mas não únicos):


1. Primeiramente, a poesia é uma evocação e, como tal, dispensa a objetividade (ou a obviedade) do texto prosaico. Enquanto a ficção explica e demonstra, a poesia apenas sugere, aponta, dá pistas. Enquanto leitores e leitoras, o nosso olhar não apenas desdobra as palavras poéticas, mas enxerta nelas os significados que não se manifestam explicitamente.

2. Em segundo lugar, essa característica evocativa da poesia faz dela uma comunicação profunda, que exige tempo, lentidão, contemplação – atividades revolucionárias num tempo de celeridade e imediatismo, de vídeos rápidos e de zapping do reels. A massa não quer contemplar, mas apenas ver, ver, ver, like, like, like. E a poesia exige somente um ato de coragem: que fechemos os olhos para escutar sem pressa, para sentir o mundo na pele, para topar com aquele susto gostoso diante de um verso revelador. Perdemos esse fio de prazer?

IV. Milagres

Não quero fazer milagres. Só assumo a obrigação de defender a poesia, essa criação literária que está no limite da linguagem e que faz de mim um homem menos precário, mais conectado com a parte invisível, potente e complexa da vida. Por isso mesmo, agreguei uma meta extra para 2024: a partir de agora, esta coluna será um ponto de encontro para falarmos de poesia.

A leitura da Ilíada pode ser tão homérica quanto a narrativa ali contada, mas, seja em que época for, a poesia nunca deixou (e nem deixará) de ser uma força constituinte do humano. Como Octavio Paz observou e registrou, o ritmo e a música são dois ingredientes que encontramos desde sempre tanto na poesia como na nossa própria forma de ser e estar na linguagem. O angolano Zetho Cunha Gonçalves, poeta certeiro e cortante, certa vez disse que a poesia é anterior a Deus – eis aqui dois poetas e duas verdades sem tamanho!

V. Um poema para terminar

Por falar em milagres e coisas invisíveis que só a poesia revela, termino a primeira crônica do ano com este poema de Mar Becker:

penso em como seria educar uma pessoa com base na ideia de que há coisas que esvoaçam
cortinas, roupas em varais
– as folhas de um caderno aberto sobre a mesa próxima à janela.

2024 feliz e com mais poesia para nós!

 

Abraço!