A alteridade do eu em “Em sou Mucuxi”, de Julie Dorrico
Por Edson Nascimento Campos
Gostaria de refletir um pouco sobre o sentido – ele me parece dialógico - que está vivo no título do livro, “Eu sou Mucuxi”, de Julie Dorrico (Caos e Letras), expressão literária da contemporaneidade de nossas letras brasileiras.
Começaria, chamando à cena enunciativa do que escrevo uma crônica de Clarice Lispector lá, do livro, “A descoberta do mundo”, da Editora Rocco, e reeditada no livro, “Clarice Lispector, Para não esquecer”, da Editora Siciliano, sob a forma de uma Antologia das antigas crônicas da escritora, 1992, à página 32:
A experiência maior
Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros : e o outro dos outros era eu.
O eu-estético de Clarice Lispector está em busca daquilo que não era eu. E, nisso, descobre que tinha sido aquilo que os outros eram. Ela descobre, assim, que o seu eu seria o eu da identidade. E a experiência maior seria ser o outro do outro como expressão do eu: o eu da alteridade.
A partir do exposto, até então, trago um pouco do pensamento dos bakhtinianistas ao considerarem os limites de sentido da identidade e da alteridade. Para tais pensadores, a identidade circula socialmente como objeto funcional: o que serve ou supre o que é necessário. Desse modo, ser índio seria uma identidade que satisfaz aos interesses das forças centrípetas, ou forças de centralização, empenhadas no processo de dominação da vida social no trabalho de seu projeto de colonização.Por outro lado, esses mesmos pensadores pensam a alteridade como objeto infuncional , ou seja, todo aquele objeto, pensado como produto artístico,que teria como atributo a qualidade de superar ou ultrapassar o pragmatismo, ou o utilitarismo, da identidade do eu, como objeto funcional. A construção dos objetos infuncionais – a alteridade do eu – estaria situada na esfera de ação das forças centrífugas , ou de descentralização, que, então, realizariam a operação de resistência critica ao eu da identidade. Desse modo, instaurariam, por exemplo, a alteridade do eu: ser indígena. É, aliás, o que pensa a maioria, no Supremo Tribunal Federal, aqui, no Brasil, ao defender a constitucionalidade dos interesses dos povos originários do Brasil. Por outro lado, o eu da identidade, ser índio, é o que defende a maioria dos congressistas brasileiros em apoio aos interesses das forças centrípetas localizadas, sobretudo, entre os ruralistas brasileiros.
Resumindo, o que vejo em “Eu sou Mucuxi” é a expressão da alteridade do eu, uma vez que esse eu ultrapassa o eu da identidade, e , como tal seria aquele outro do outro do dizer de Clarice Lispector como experiência maior. É possível dizer que teríamos, assim, nesse livro a contraposição e o confronto dos signos ser indígena e ser índio, o que lhes confere a condição de serem signos dialógicos, ou contraditórios, e, por isso, a afirmação Eu sou Mucuxi, é manifestação estética que negaria, e nega, as articulações sociais que contestariam, e contesta a positividade de tal afirmação.
Numa outra chave de leitura, é possível ler o caráter dialógico, ou contraditório , do signo como criação de linguagem. E aí me lembro de João Guimarães Rosa , lá, no Grande Sertão: Veredas, da Editora José Olympio, 1967, à página 235:
Pergunto coisas ao Buriti: e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo azul, e não se aparta de sua água – carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.
Aqui, nesse trecho de Rosa, fica evidente, a meu ver, o tratamento dialógico da linguagem na contraposição e no confronto do signo professor nos limites da identidade e da alteridade: o professor é o eu da identidade por ser aquele que sempre ensina, mas é, ainda, além, o eu da alteridade, por ser aquele que de repente aprende. Ora diante disso, pensando que Buriti, metaforicamente, representa o mestre, tal mestre carece de espelho, e, com isso , é possível dizer que estamos diante de uma experiência em que as imagens do professor são criações que se enraízam no espelho das águas do narcisismo.
Ao advogar a pertinência do narcisismo da linguagem , lembro-me de Heloísa Vilhena de Araujo, no livro, “O espelho, contribuição ao estudo de João Guimarães Rosa”, editado em 1998, pela Editora Mandarim. Nesse livro, ao fazer a análise do conto, Darandina, traz ela, na página 182, a contribuição teórica do psicanalista, Guy Rosolato. No estudo do narcisismo, afirma ele que tal experiência é uma organização psíquica comprometida com a reprodução, a morte - narcisismo de retração - ainda que essa organização possa , ainda, estar comprometida com a transformação , com a vida, com a criação, com a linguagem: o narcisismo de expansão.
É possível dizer, então, que , em Grande Sertão; Veredas, como criação literária, há um compromisso com a vida, com a criação, com a linguagem, ou com o embate dialógico corajoso, do eu da identidade com o eu da alteridade, gerando nessa alteridade um objeto infuncional: a alteridade do eu, na qualidade de professor que de repente aprende. Nisso, o que temos , no espelho das águas , é a manifestação do narcisismo de expansão. A alteridade do eu do professor só se justifica no contexto da expansão: o professor de repente aprende. E o que vejo em “Eu sou Mucuxi”? Vejo a articulação do embate dialógico do ser índio com o ser indígena, com a defesa da alteridade do eu como objeto infuncional naquilo que lhe é peculiar: ser um produto artístico. Ser indígena é , assim, uma criação: o que explica a ação do narcisismo de expansão. O livro de Julie Dorrico traz ,então, na superfície de seu texto, a vida, a criação, a linguagem da literatura como atributos do narcisismo de expansão : texto comprometido com a atualidade da literatura brasileira na produção daquilo que vem sendo dito como literatura indígena.
Edson Nascimento Campos é professor aposentado da Faculdade de Letras (UFMG). Atuante na Graduação, lotado no antigo Departamento de Letras Vernáculas. Atuante, ainda, no Programa de Pós-Graduação em Linguística (POSLIN), vinculado à linha de pesquisa Linguística dos Gêneros e Tipos Textuais.