Sobre a importância de um projeto literário
Neste mês de agosto de 2023, o meu oitavo livro, Não há castigo maior do que um amor que dure para sempre, será publicado.
Inevitável pensar a respeito destes mais de dez anos de escrita ininterruptos, com uma frequência que só se desfez durante a pandemia, quando escrever se tornou um suplício, um esforço que, apesar da insistência, resultou em muito pouco.
O surgimento do novo livro é um bom momento para conversar com você que me lê – e com você que escreve também – sobre um elemento importante para nós, que lançamos histórias ao mundo: um projeto literário. Vamos juntos.
Escrevo desde os 10 anos de idade. Tornei-me escritor publicado em livro em 2015. Sãos mais de 1.300 páginas publicadas. Não fico pensando se árvores foram destruídas em vão para se transformar em papel para a minha literatura (até porque árvores que se tornam papel não vêm da ilegalidade, pra começo de conversa). Penso que optei por publicar porque existe algo a ser dito. Existe algo que acho importante colocar para o leitor para que ele ou ela vivencie através das minhas histórias, daquilo que eu quero dizer – e o que cada leitora e leitor fará a partir disso será sempre fruto do seu infinito particular. A minha premissa vem do José Saramago: Vivo desassossegado. Escrevo para desassossegar, frase que repito sempre que tenho a oportunidade. A literatura, para mim, tem esse norte. Que o leitor queira chegar ao final da minha história é um objetivo, claro, mas não pode ser apenas isso. O meu sonho é que o leitor ou leitora não consiga ir imediatamente para o próximo conto, para a próxima crônica, para o próximo evento narrado porque ele ou ela ainda está ruminando o que acabou de ler. Uma história não termina em seu desfecho – e quem a lê pode torná-la interminável dentro de si, se ela repercutir o suficiente para que aquilo que foi lido mexer com algo dentro dele ou dela.
Desde que Os escritores que eu matei foi publicado que eu sinto e sei que existe um projeto literário em mim. Projeto este que é pensado e lapidado com rigor, mas também com leveza porque não podemos transformar a criação num sentimento de trabalho escravo. Se todas as vezes que um escritor for anotar uma ideia, ou desenvolver uma ideia diante do computador, aquilo for unicamente sofrimento, então que ele ou ela vá se cuidar. Não que livros bons não possam surgir de quem detesta o ato de escrever em si. Rachel de Queiroz odiava sentar para escrever – e no entanto escreveu obras importantes. E outros, como Tom Clancy, que também dizia odiar escrever, não publicou nada de grande valor literário, mas até sua morte vendia milhões de exemplares com obras de entretenimento – que também têm o seu lugar no mundo, ainda bem.
Muita coisa aconteceu nesses anos. Às vezes, por ocasião de, digamos, um clube de leitura coletiva que está lendo um dos primeiros livros e para o qual fui convidado a participar no último encontro, que reúne todos os que o leram, acabo relendo trechos – e sempre me pego pensando em como a minha escrita era mais solta, menos despreocupada com algumas questões de linguagem que hoje não passariam pelo meu crivo pessoal. Melhorei, piorei? O livro não é mais meu, mas de quem o lê, então não tenho a resposta. Agora, que a linguagem se tornou uma preocupação maior com o passar do tempo, sem dúvidas. O que isso significa na prática? Que eu gosto de sentir que as palavras se concatenam, que eu estou sendo claro sem ser simplório e, sobretudo: que eu quero contar uma boa história da melhor maneira que eu puder. Isso é parte intrínseca ao meu projeto literário.
Alguns escritores, como Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Rubem Fonseca têm sua identidade revelada através da forma como escrevem, mais até do que o conteúdo. Sem dúvida que quem os lê também já sabe, ou imagina, o tipo de questão que atravessa a obra de cada um. Nelson Rodrigues dizia que cada autor tinha um punhado de obsessões sobre as quais escreve, espalhadas por toda a sua obra. E penso mesmo que é por aí. Dito de forma simplificada, quem abre um livro do Rubem Fonseca espera encontrar sexo e violência no ambiente urbano; quem lê Clarice Lispector sabe que encontrará questões existenciais colocadas num fluxo de consciência denso e intenso, e quem lê Guimarães Rosa sabe que encontrará a representação do mundo e do que somos em ambientes rurais. No entanto, gosto de me desafiar. Se escrevo contos realistas, meto uma história com elementos de realismo mágico no meio deles. Se tento escrever uma novela de alta voltagem com uma protagonista duríssima, de tão calejada pela realidade, no livro seguinte a protagonista é uma cidade, cuja história eu conto ao longo de dezenove contos e trezentos anos, todos com elementos de realismo mágico. Não há ousadia formal nisso, mas há um desafio constante, e é isso que me move. Todas as questões da minha obra estão nesses livros, mas fazê-los numa estética diferente é parte do que me move a querer continuar a escrevê-los. Ou alguém duvida que o tom monocórdico obra após obra mergulharia no marasmo e na lassidão o escritor sagitariano, pouco afeito à mesmice? Eu não quero ser reconhecido por um estilo de escrita quando alguém abre meus livros. Quero, isso sim, que aquilo que está dentro deles cative quem me lê a apostar no livro seguinte, ainda que não faça ideia do que vá encontrar nele em termos de estética literária.
Pensar naquilo que se quer dizer, naquilo que se tem a dizer com o que se pretende publicar e que se deseja que chegue aos outros – eis aí o maior desafio de quem quer ser lido, mas é algo que precisa ser feito. Jamais confio que algo bom pode sair de alguém que escreve “para desabafar” ou “para acertar as contas com o passado” (Gustave Flaubert inclusive tem uma frase ótima sobre isso: “Não pense que você vai exorcizar o que oprime a sua vida dando-lhe vazão sob a forma de arte”) ou “só quando dá na telha”. Isso serve para quem mantém uma relação íntima com um diário, daqueles que podem ser comprados na papelaria do bairro, com direito a cadeado em forma de coração e chave. Há diversos cursos em escrita criativa – ou escrita literária, termo que prefiro – por aí, cheios de pessoas que chegam dizendo que só querem escrever aquele “livrinho de memórias sobre a infância da mamãe”, ou “a história da família, pra que ela não morra quando a geração anterior se for”. Tudo isso é válido. São registros de memória, de um tempo, e é importante que tudo isso esteja em um lugar acessível à pesquisa, ou para que se crie uma memória coletiva do zeitgeist, permanentemente à disposição de quem procura entender o espírito do seu próprio tempo.
Por isso mesmo que a escrita para quem deseja seguir escrevendo, para quem deseja seguir buscando um público leitor, carece de foco, de constância, de planejamento. Escrever não é brincadeira, sobretudo para quem sente que tem algo a dizer livro após livro, e mesmo sendo um trabalho invisibilizado, mal remunerado para a maioria daqueles que escrevem e publicam, não pode ser desenvolvido ao acaso, “quando eu for tendo tempo”. Crie oportunidades para criar e desenvolver seu projeto. Alice Munro, que venceu o Prêmio Nobel de Literatura, dizia que alguns de seus livros foram escritos enquanto ela amamentava as filhas ou enquanto cuidava da livraria que tinha com o primeiro marido. Ou seja, é árduo, mas possível. Ter um projeto literário não é pensar onde se quer chegar com a sua obra – inclusive porque isso nem depende de você, por mais que você siga os passos dos coaches literários. Um projeto literário significa saber o que se quer dizer, e fazê-lo da melhor forma possível num dado momento da vida – e tentar fazer com que seu trabalho chegue aos outros.
Dentre tudo aquilo que chega em nossa vida para ficar, que cultivamos com ardor, amor e querer, quais delas cresce e se mantém facilmente? Eu tenho certeza que você sabe a resposta.
O resto é sorte e circunstância.