Roer palavras
Foi no meio da pandemia quando Djaimilia Pereira de Almeida anunciou o seu adeus à coluna “Crônica de Lisboa”, da Quatro Cinco Um. Na nota de despedida (ao final da última publicação), a escritora luso-angolana agradeceu a companhia de leitoras e leitores, deixando no ar um recado ao mesmo tempo teórico e estético: “[a] crónica alimenta-se do presente e rói o intervalo entre o que vamos vivendo e o que pensamos sobre ele”.
Eu não acompanhava a coluna na época em que Djaimilia anunciou a saída da revista. Li essa última crônica (e a despedida) recentemente, movido por um apagão da escrita, uma espécie de blecaute que a nossa era tecnocrata batizou de “travar”. O nome pegou e eu travei na escrita. Não é a primeira vez, nem será a última. A escrita literária é uma espécie de sistema elétrico sobrecarregado: de vez em quando cai.
Mais do que a crônica derradeira, foi a nota de despedida da Djaimilia que azeitou as engrenagens do meu mundo literário: por um lado, a mensagem da escritora me lembrou que a pandemia existiu. Parece que não, mas existiu e persistiu em excessos de presente – não o presente da escrita djaimiliana, mas aquele bloco de tempo que caiu e congelou o mundo. A pandemia certamente foi o excesso de presente vivido pela nossa geração, tempo que roemos mal, tempo que ainda não conseguimos assimilar. Parece que não, mas a pandemia existiu, embora negada na época e ainda hoje; embora esquecida por mim, por muitos. Uma espécie de hiato.
Por outro lado, essa notinha tão inocente, plantada ali no final da crônica, me fez pensar que essa paralisia da (não) escrita (o travar) talvez revele uma relação neurótica com o presente: seja na escrita da crônica ou não, o adormecimento do ímpeto literário parece resultar da minha incapacidade para lidar com o presente. No meu caso foi e é isso, tenho certeza.
Confesso, portanto, que escrevi esta crônica sem estar totalmente curado, ainda meio bloqueado e tentando me desenferrujar entre palavras e tonturas, entre frase e vertigem, entre parágrafo e vômito, entre texto e morte – o presente às vezes não cabe em mim, não cabe nas palavras que tenho à mão, não cabe na razão de ser. Quando é assim, só o silêncio resolve, o mais implacável dos silêncios: aquele que nos é imposto por dentro.
Ao contrário da Djaimilia, eu não me despeço. Continuo por aqui, roendo tempos e palavras.