Abstinência Literária X Abstinência de Leitura
Uma sociedade literária em um hospício virtual. A tela que nos detém é a mesma que nos priva de uma experiência literária.
Bauman falava que nossa modernidade é feita de fluidez, uma sociedade líquida, onde tudo se esvai e o tempo está mais veloz num ritmo do qual praticamente pequenas coisas, pequenas faltas passam despercebidas.
Quando falamos de abstinência, pensamos em uma ideia de abrir mão de alguma coisa em função de um objetivo. Mas penso muito mais na abstinência no sentido de privação ainda que involuntária, forçada ou não desejada. Quem quer se abster de algo que curte? Ninguém. O que esse discurso que trago entre Bauman e abstinência tem a ver?
Ao olharmos para o modo como vivemos na sociedade contemporânea, nessa pós-modernidade tecnológica, estamos presos a uma vida 24 horas conectados na era digital que nos priva sempre de alguma coisa, de momentos prazerosos e até mesmo daquilo que amamos fazer rotineiramente.
Ainda que a pandemia tenha proporcionado novas possibilidades de trabalho remoto, como home-office, poder estar em casa perto de seu conforto, dos seus livros e das pessoas que ama, quando você se pluga, tudo isso some como se mudasse de canal. Livros ao seu alcance em casa deixam de existir, a tranquilidade de não estar enfrentando um engarrafamento se torna vazia. O que antes era empecilho para ler ou curtir o momento com mais tempo e sossego, se perdeu quando alcançamos essa possibilidade que acaba sendo minada pela tecnologia na palma da mão.
Outro ponto que fomenta a abstinência indesejada é o excesso de trabalho pela falta de limites, sem hora para parar, para encerrar o expediente quando se trabalha de forma virtual. Mas dizem que quem tem limite é município, acredito que ser humano precisa de limites a todo o tempo.
Ao perceber que não consigo ler com a mesma vontade de antes, uma certa cobrança da consciência e um desejo desesperador de sentar e escrever sobre a leitura feita, começam a se tornar um conflito, percebo que há um problema sério: a abstinência. Abster-se da leitura para quem trabalha com textos chega a ser estranho, então percebo que para além do texto como ferramenta de trabalho, para quem não é autor ou criador de narrativas, a abstinência literária, que é o alimento da nossa imaginação, que dá vazão para nossos sentimentos, reflexões e anseios, aí sim, eu acho preocupante!
Precisamos falar da leitura como terapia ocupacional do bem-estar mental e do sensível, porque o modo como vivemos nesse mundo contemporâneo é uma passagem, enquanto o que a leitura literária nos proporciona é experiência, vivência individual ou até mesmo compartilhada, seja por meio da escrita, da troca, dos grupos de leitura que permitem que a vida pare para debruçarmos sobre algo, sobre nós mesmos.
Quantas vezes deixamos de sentir emoções proporcionadas por um poema, por uma letra de música e por um abraço nas horas de diálogo? É preciso entender que essa abstinência não é normal, não pode se tornar normal. É preciso impor limites ao vazio existencial para que possamos atravessar os limites da alma e vivenciar o que só podemos experimentar por si, não tem como delegar para o outro a sensação de rir diante de um trecho hilário de um livro de comédia, ou chorar quando nos identificamos com alguma história ficcional ou biográfica.
Passar um tempo dentro de uma livraria ou sebo folheando livros, é também uma forma de desconectar da realidade artificial, dar um off na Inteligência Artificial e nos algoritmos que passam 24 horas nos stalkeando. Quantas vezes nos permitimos isso ao longo de uma semana? Quantas abstinências vivemos sem perceber? Quantas portas deixamos de abrir ao pegar um livro e adentrar em outros mundos fantásticos e tão mais sensível que uma tela?
Estamos navegando ou apenas zapeando a realidade?
Diante de tantas perguntas, estamos nos tapeando com uma falsa realidade, sendo que o mais verdadeiro humano se transmite por entre histórias. Qual história estamos deixando registrada na nossa memória quando não estamos lendo? Reitero Bauman quando ele afirma: “O que é fluído se esvai e não fixa permanência em nós”.