Bebida Amarga, de José Almeida Júnior
Em seu terceiro romance, Bebida Amarga, o potiguar José Almeida Júnior traz o conflito entre Marcos, jornalista comunista do a Última Hora, e seu filho, o também jornalista Fernando, quem faz oposição ao pai em praticamente tudo.
O acirramento da polarização política em meados da inauguração de Brasília e nos anos subsequentes e anteriores ao golpe de 1964 compõe o contexto e cenário desse conflito. Pai e filho intercalam-se como narradores, trazendo duas perspectivas sobre os acontecimentos políticos e pessoais da trama.
Não bastasse os conflitos políticos do país, a tensão familiar é constante ante a frequente oposição de Fernando ao pai, o casamento beligerante e falido, a difícil relação entre sogra e nora e as dificuldades em lidar com Moniquinha, filha de Fernando e neta adorada de Marcos, único que consegue lidar com o autismo não diagnosticado da menina.
Essa multiplicidade de elementos poderia azedar o romance, mas é notória a habilidade do autor em equilibrar na narrativa os acontecimentos políticos, os bastidores da imprensa e política, aos dramas pessoais e familiares de seus protagonistas. A facilidade com que a mudança dos temas se dá soa natural. Não há um corte para se deliberar, por exemplo, sobre a oposição de Fernando a Jango e a sua recusa em admitir o fracasso de sua relação com Rebeca. Sua ojeriza ao comunismo, seja lá o que isso quer dizer na cabeça dele, sua adesão cega e ingênua a Carlos Lacerda e a devoção a Nossa Senhora Aparecida e ao catolicismo conservador o impede de perceber que é facilmente manipulado e traído. Além disso, seus valores supostamente sólidos o impede de enxergar os problemas da filha, abandonada por pai e mãe na casa dos avós paternos.
De outro lado, Marcos conheceu bem as marcas do autoritarismo quando foi preso e torturado na ditadura Vargas. Frise-se que o personagem é protagonista do primeiro romance de José Almeida Júnior, laureado com o Prêmio SESC, o a Última Hora. Maduro e experiente, Marcos tenta abrir os olhos do filho ao contexto em que está metido, mas o fato de ser comunista, de viver um casamento de conveniência enquanto tem um caso com uma colega de jornal fazem com que o filho enxergue nele um modelo a ser rechaçado. O único ponto fraco de Marcos é Moniquinha, a neta, por quem é capaz de abandonar a si e a todos, e, por isso, usada por Fernando para chantagear e pressionar o pai.
O romance é ágil, gostoso de ler, faz com que se queira avançar capítulo a capítulo, aguçado tanto pela curiosidade histórica quanto pelo drama familiar. Destaque para a construção das personagens, o tom e a verdade de cada uma delas, bem como o carisma e a repulsa que despertam. São demasiado humanas e próximas.
Apesar de todos os apectos que tornam esse um ótimo romance, há um ponto que me deixou reticente, o da polarização política. Há paralelos interessantes com os dias atuais. Contudo, me incomoda uma possível falsa equivalência, que pode surgir numa leitura mais apressada. Ora, há aspectos daquela época que não se vislumbram na nossa. Tome-se como exemplo o conservadorismo. Quando se fala em conservadorismo no pré-golpe de 1964 está-se a tratar de uma coisa diversa do conservadorismo de oportunismo do MBL ou no do bolsonarismo. Se visto numa perspectiva positivista ou meramente conceitual, pode-se dizer que nunca foi conservadorismo. O traço moralizante está em ambos, mas as bases conceituais conservadoras (de Oakeshot a Scruton) não se encontram nem lá nem cá. Sociologicamente, sou tentado a dizer que eles são conservadores à medida em que assim se denominam e, por conseguinte, seu conservadorismo está nos sentidos e significados que mobilizam. Nem mesmo o lema fascista Deus, pátria, família alardeado lá e cá, apesar da coincidência, escapa de trazer sentidos diversos. E a polarização de outrora não chegou a converter o adversário em inimigo, numa lógica beligerante de eliminiação, apesar de termos visto aqui e acaolá quem já desfrutasse de tais ideias. Assim, as semelhanças não possibilitam equivaler o momento anterior com o presente, tampouco permite dizer que um era melhor e outro pior. Ambos são produtos de sua época, e ainda que evoquem os mesmos fantasmas e ritos de exorcismo o celebram e executam a partir de novos significados. Por sua vez, acho que esse é um risco que se corre ao lançar um romance que resgata um período conturbado de nossa história frequente evocado para um revisionismo por grupos políticos de extrema-direita de nossos dias.
Uma última recomendação, leiam Bebida Amarga.