Canto da Planície, de Kent Haruf
Em meu segundo contato com a prosa de Kent Haruf, chego à famosa trilogia que o consagrou. O autor, pouco difundido por aqui, era frequentemente comparado a Cormac McCarthy e Annie Proulx como arquitetos de uma prosa que mergulha na alma do americano interiorano, de tipos comuns e sem expectativas. Contudo, se McCarthy imprime um tom mais violento e nefasto aos seus romances, Haruf traz sutileza e um jogo de sombras, de diálogos lacunosos e de coisas para pressentir e perceber entre as brechas, de onde pode se ver alguma luz, deixadas propositalmente no texto.
Canto da planície, primeiro volume de sua celebrada Trilogia da Planície, cujo título remete às músicas vocais entoadas em uníssonos nos primórdios da igreja cristã e, mais tarde, passa a se referir a qualquer melodia ou ária simples e sem enfeites, é um mosaico de vidas fraturadas, vivendo um dia após o outro, sem esperanças de um novo alvorecer.
Os capítulos trazem recortes de cada personagem, sempre sob o olhar de um narrador demasiado atento, objetivo e poético, traduzindo cores, cheiros e temperatura para tratar da solidão, dos conflitos e da necessidade de encontro e amor de cada um deles. O romance abre com Guthrie, um professor que vê em conflito com um aluno violento e relapso, um pai à beira do descaso, um esposo lutando com a depressão da esposa e um amante esforçando-se para manter-se na penumbra. Aida temos o foco em Ike e Bobby, filhos de Guthrie, com nove e dez anos, no limiar entre a infância e a adolescência, mergulhados no abandono de Ella, a mãe deprimida, a displicência do pai que se esforça e nem sempre se faz presente; em Victoria Roubideaux, uma adolescente de 17 anos explusa de casa pela mãe ao se encontrar grávida de um sedutor que a abandonou, e; os irmãos McPheron, dois velhos solteirões, bem ao estilo rednecks, que vivem isolados numa fazenda decadente quarenta quilêmetros ao sul de Holt. Todos esses personagens se vêem às voltas com dilemas, desafios, ausências, solidões e conflitos. E são seus encontros e desencontros que vão moldando e dando corpo ao romance.
Apesar de cada capítulo recortar a perspectiva de um personagem, Holt, a pequena cidade em que vivem, destaca-se como constante e protagonista. Esse cenário bucólico das planícies do Colorado, demarcado pela passagem das estações (o livro vai do outono ao verão), é palco para solidões profundas, medos aterradores e conflitos. Cada personagem carrega sentimentos profundos alicerçados no silêncio e na solidão. A nudez e vulnerabilidade da paisagem no outono, antessala do inverno, é refletido nas tonalidades com que somos apresentados a cada um dos personagens.
Haruf é mestre em construir personagens tão francas e solitárias a ponto de aproximá-las do leitor, conduzindo o leitor à empatia e emoção sincera. Este é um daqueles romances cheio de nós na garganta, de risos melosos e contidos e de emoção frouxa. A densidade do enredo, a costura dos diálogos, a subversão dos tipos funcionam para dar ao todo a sua exuberância e profundidade. Além disso, há a riqueza de suas descrições, mapeando a cidade, erguendo paredes e casas habitadas e desabitadas, familiarizando o leitor com as ruas e estradas viscinais, com celeiros abandonados, com o pelo e a robustez dos cavalos e vacas. Ao mesmo tempo, Haruf não demarca tempo, nem mesmo ao mencionar os veículos. Uma caminhonete é apenas caminhonete, um telefone é apenas telefone, sem modelos, sem marcas, sem registros de temporalidade que possa situar um momento exato na história. Isso contribui para dar a Holt esse aspecto de um lugar tão próximo de nós e tão perdido num tempo e espaço do ontem e do agora.
O lirismo, a beleza nas coisas não tão bonitas, a percepção da passagem do tempo, a incerteza das coisas incompletas, a vida e a morte se intercalando como fatos, longe da frescor da novidade e da dramaticidade da tragédia, apenas como movimentos inevitáveis da existência e da convivência humanas fazem de o Canto da Planície um momento ao homem comum, à grandeza dos gestos inusitados, à beleza dos encontros mais sinceros e dos desencontros mais inevitáveis, tudo embalando pela passagem das estações e dos dias, uns mais cinzas e outros mais ensolarados, todos igualmente belos, todos igualmente nossos.
Haruf é mesmo um mestre.