O distópico e o real em Friday Black, de Nana Kwame Adjei-Brenyah
Friday Black (traduzido por Rogério W. Galindo, Fóforo, 2023) marca a estreia de Nana Kwame Adjei-Brenyah. Em doze contos retrata a fatalidade e catástrofe do racismo e as faces delirantes e selvagens da sociedade de consumo. Esse olhar de estranhamento e descontentamento, temperado pelo sarcasmo e exagero, torna a trajetória do livro bem mais interessante, proporcionado momentos de deleite, reflexão e divertimento, mesmo tendo seus altos e baixos.
Adjei-Brenyah faz um exercício reflexivo e distópico em contraponto aos Estados Unidos sob o signo de trumpismo, cuja bandeira flamula sobre o solo de conflitos raciais intensos, segregacionistas e disfarçado de defesa e patriotismo, buscando resgatar uma nação utópica e branca que nunca existiu e, certamente, não existirá. Atrelado a um discurso resgate de direitos, de uma nação unificada e grandiosa, homens pretos são sufocados por joelhos de policiais, mesmo diante de câmeras e protestos, porque a certeza da impunidade ou da empatia lhes consola, legitima e autoriza. A pele preta é perigosa. A pele preta é ameaçadora. Assim, em nome da legítima defesa de si e da família, um homem branco, de meia-idade, sente-se confortável para decapitar cinco crianças pretas, uma delas com apenas 8 anos de idade, simplesmente por estarem do lado de fora de uma biblioteca pública.
"(...) Não sei vocês, mas eu amo meus filhos mais do que amo a lei. E amo meu país mais do que amo meus filhos. É disso que esse caso se trata: do Amor, com A maiúsculo. E do nosso país. É isso que estou defendendo aqui hoje. O meu cliente, o sr. George Dunn, acreditou que estava em perigo. E sabem de uma coisa, se você acredita em algo, seja lá o que for, isso é o que mais importa. Neste país nós temos o direito de acreditar. Os Estados Unidos, nossa bela e soberana nação. Por favor, não matem isso hoje aqui."
Os cinco de Flinkelstein, conto que abre o livro, não poupa nada nem ninguém. A brutalidade do crime, o cinismo polido do advogado de defesa, a confiança na branquitude do sociopata, a reação explosiva dos pretos e a crescente que envolve o narrador são todos aspectos que se fundem com elegância, destreza e clareza para tornar esse um daqueles contos que não se esquecem, ficam remoendo e persiste na memória. No mais, anuncia o desconforto que o livro porporciona como um todo.
Deixe-me pontuar algo antes de prosseguir, Friday Black figurará facilmente entre resenhas que dirão ser polêmico ou chocante. Porém, em momento algum, vejo intenção chocar por chocar. Há tempos compreendi que a realidade anestesia, causa indiferença, um tipo de conformismo incapacitante. Uma chacina, um choque; duas chacinas, um pouco mais leve; três chacinas, vida que segue. A realidade perde o seu efeito, e a arte contém a potencialidade de lhe restituir o espanto. Como disse Tommy Orange, em sua resenha para o The New York Times, "(...) quando você não consegue acreditar no que está acontecendo na realidade, não há melhor momento para suspender sua descrença e ler e confiar em uma obra de ficção - no que ela pode fazer".
O conto ainda problematiza a negritude com fina ironia a cada vez que o narrador tenta disfarçá-la na voz, nas roupas, nos gestos ou nas atitudes, tudo medido a partir de um índice de negritude (me remetendo a Fannon e ao "negro sabonete" descrito por Bruno Ribeiro em Porco de Raça). A crescente tensão vai compondo o cenário e apresentando os elementos que conduzem ao seu desfecho.
Adjei-Brenyah passeia por diferentes estilos, apontando o olhar para temas diferentes e interligados, indo desde o realismo mais exagerado até ficção científica (como em A Era). Há ainda momentos brevemente íntimos (como em Coisas que minha mãe dizia).
"A Black Friday é diferente para cada pessoa."
A desigualdade de classe e as disparidades entre uma sociedade branca do consumo e um negra da sobrevivência compõe o tema do conto-título e de alguns outros que parecem interligados (veja Como vender uma jaqueta, segundo o Rei do Gelo e No varejo), todos ambientados no shopping center, descrito entre um cenário de guerra e uma selva pouco amistosa. A animalização dos consumidores em disputa desloca-se para os vendedores em disputa, ou seja, o foco do predador à presa, da presa ao predador. Esse esforço de redimensionar e aplificar os horizontes foram um arco interessante, apesar de os dois últimos contos não terem o mesmo fôlego de Friday Black.
Estou com fome. Minha família não fez o lance de Dia de Ação de Graças este ano - o que foi um alívio, exceto por eu ter perdido a chance de comer farofa. Eu me ofereci para ajudar a comprar as coisas. Minha mãe tinha perdido o emprego. Ganho oito dólares e cinquenta centavos por hora, mas economizei. Mãe, pai, irmã e eu. Mas aí a gente resolveu deixar a coisa toda pra lá porque a gente não gosta mais uns dos outros. Esse foi um dos efeitos de viver na pendura. Antes a gente fazia brincadeiras juntos. Agora meus pais falam aos gritos sobre dinheiro, e quando eles não estão fazendo isso a gente fica em silêncio. Vou andando, pensando se tem farofa em algum lugar do shopping.
Outro ponto a se destacar é o trabalho de linguagem e construção de personagens. Em todos os contos é possível realidade nos personagens, nos narradores, mesmo quando postos em situações bestiais ou em cores vibrantes e tons exagerados. Há um tanto de lealdade a sua perspectiva de realidade para conceber cada personagem, dando vida em seus gestos e diálogos afiados e cheios de humor e maledicência.
É certo que há contos mais envolventes que outros. Algumas passagens, apesar de compreensíveis, soam arrastadas, um pouco lentas ou repetitivas, e talvez por isso perdem um pouco do impacto. Nem por isso perde em qualidade, Adjei-Brenyah domina bem a escrita, demonstra segurança e habilidade na construção de cada trama, cada frase, cada palavra posta, e isso passa a sensação de um texto cuidadoso, capaz de esmigalhar e disfarçar a profusão do drama étnico-racial estadunidense de modo que reste apenas boas histórias com perspicácia, impacto, elegância, reflexão e diversão.