Mulato
"Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela.
Escrevo em traços vivos e ríspidos de pintura.
Estarei lidando com fatos como se fossem irremediáveis pedras".
Clarice Lispector, A hora da estrela (1977)
Fui chamado de mulato e fiquei com esse sapo por dias entalado na garganta. Fui chamado de mulato num jantar com seis pessoas e nenhuma delas fez nada - inclusive eu. Fui chamado de mulato nesta Madri de 2023, onde correm juntos os ventos da liberdade democrática e os ecos do franquismo gritado até 75 e além. Fui chamado de mulato porque a Transição Espanhola realmente não acabou. Fui chamado de mulato porque partidos como Vox e PP ainda encontram correlatos ideológicos na gauche caviar española.
Fui chamado de mulato porque o signo linguístico é casa, mas nem sempre é aldeia. Fui chamado de mulato porque a beleza e o nojo se beijam (nem sempre) às escondidas. Fui chamado de mulato não apenas porque é Velho o Mundo, mas também porque o mundo é velho - ou seja, igual. Fui chamado de mulato porque é isso o que importa. Fui chamado de mulato porque Frantz Fanon tem chegado tarde.
Fui chamado de mulato porque há quem pense ser esta uma forma de instaurar harmonia social. Fui chamado de mulato porque o absurdo é reconhecido por sua falta de tamanho. Fui chamado de mulato porque há quem não consiga ver o mundo sem racializá-lo. Fui chamado de mulato porque os livros de María Zambrano, Paul B. Preciado e Fernando Savater não têm o mesmo alcance (nem a mesma velocidade) que a Amazon ou o metrô de Madri.
Fui chamado de mulato e me calei. Fui chamado de mulato porque sou um educador que não conseguiu educar (desta vez). Como diz Marcelino Freire, agora escrevo por vingança. Ou posso ser mais sincero e dizer com palavras próprias: escrevo porque, como no vôlei de minha adolescência, não aprendi a rebater - há ótimas perífrases para essa neurose e gosto mais desta: "O prato de hoje será pedra cozida".