Ansiedade oracular
Sou o tipo de ansioso que se medica com algum tipo de veneno que eu mesmo produzo, porque sofro deste mal desde criança e apesar de obeso, fumante, sedentário, boêmio, hipertenso, ulcerado, dono de um refluxo de fazer inveja ao vulcão Kilauea, calvo e cardíaco, ainda estou por aqui, escapando de um enfarto fulminante.
A verdade – ao contrário de algumas coisas daquela lista ali acima, como por exemplo essa de que sou obeso, logo eu, que até hoje tomo Biotônico Fontoura para sentir vontade de comer! Ora ora. Mas como eu ia dizendo: a verdade é que essa ansiedade me enche de uma energia dispersa (coitados dos meu chakras!), mas num sentido que pode ser bom: tudo me interessa. Nada passa sem ser observado – e eu não estou aqui dizendo que isso é sempre bom, mas no geral é. O que significa dizer: ao longo da vida fui me tornando muito sensível a tudo, porque como nada foge ao meu olhar, tudo é absorvido por mim, do singelo ao grotesco, de modo que sou muitos, em muitas possibilidades, inclusive as que desconheço, e isso me assusta às vezes. E se espantar consigo mesmo de vez em quando também é bom, nos realinha com nosso próprio eu, ou ao menos nos faz compreender que somos vários eus. Como dizia o filósofo espanhol Ortega y Gasset, “Eu sou eu e minha circunstância”, e completava: “e se não a salvo a ela, não me salvo a mim”, deixando implícito que o nosso entorno está sujeito a modificações a partir da ação que impomos a este meio no qual estamos inseridos – e que a omissão nos distanciará de qualquer mudança possível porque, como seres transitórios que somos, deixamos ou não deixamos marcas, e qualquer que seja a opção (quando o é) tem consequências – o que é uma observação aparentemente banal, mas que se fosse tão óbvia para todo mundo a gente não tinha chegado a este estado das coisas.
Então o percurso da vida sempre foi me levando para esses caminhos em que uma formiga nunca era só uma formiga, era a formiga e suas companheiras, aquilo que carregavam sobre a cabeça, o que as antenas se batendo – ou batendo nas outras – poderia significar, para onde iam, o que resultava daquela fileira tão organizada. As interrogações se amontoavam como corpos de guerra, e eu observava com o corpo inteiro.
Com os livros, claro, não poderia ter sido diferente.
Costumo dizer que se você me apresentar a alguém e esta pessoa conversar comigo por 10, 15 minutos, ao final deste tempo, depois de ouvi-la falar, ficar atento aos seu tom de voz, à entonação das suas palavras, ao seus gestos físicos, aos assuntos que aborda, eu saberei dizer que tipo de livro, ou quais livros, especificamente, aquela pessoa gostaria de ler, ainda que não fosse leitor ou leitora, mas do qual gostaria, se a ele desse uma chance. O que pode parecer meio pretensioso, mas não, é só um exemplo para explicar onde quero chegar: por toda a minha vida eu senti o mundo passando diante de mim. Um pássaro ao longe. O som de carros colidindo. Uma criança chorando ou sorrindo. Os corpos sendo deslocados pelas ondas no mar. Uma ninhada de filhotes de cachorro. De gato. A única flor que não se abriu na planta ao pé do muro. A única flor que se abriu na planta ao pé do muro. Nunca desenvolvi uma alma poética – sou péssimo poeta, quem sobreviver a mim saberá, tenho escrito um livro de poemas bem lentamente, que ficará para depois que eu me for, se alguém quiser publicá-lo – mas desenvolvi o que se poderia chamar de “super sentimentos”, uma espécie de intuição exacerbada que abarca os sentidos que conheço e os sentidos que desconheço, e ela raramente me falha.
É por esta razão que mesmo sem jamais ter colocado os pés em um cassino na vida, aposto todas as fichas. Me acompanhe aqui em três exemplos.
Já nem lembro mais qual foi o ano, mas eu era ali pela casa dos vinte e alguns. O nome Joyce Carol Oates passou pela minha frente e eu o achei bonito, garboso, como diria meu avô. Peguei um livro, li a orelha e zás!, levei-o ao caixa e, de lá, para a minha casa, onde o exemplar ficou parado por vários anos, até que – não, ele não foi lido – até que eu trouxesse da livraria outros, e mais outro, e mais outro livro da Joyce Carol Oates, sem jamais ler um sequer. Quando eu já tinha tudo dela a que poderia ter acesso ainda ali pelo ano dois mil e tanto, finalmente peguei um, igualmente a esmo, e me dispus a ler. Era A filha do coveiro, um dos romances dela de que mais gosto até hoje.
O mesmo aconteceu com Lionel Shriver. A escritora estadunidense havia acabado de lançar Precisamos falar sobre o Kevin, que virou filme de sucesso, quando eu o comprei e guardei. Em seguida comprei outros de seus livros. Cinco ou seis livros depois, peguei um para ler. A leitura de Shriver não é algo que eu faça com ardor. Acho sua escrita, como bem definiu um amigo, algo modorrenta. O que não significa que sua escrita seja ruim, apenas que a obra vai sendo escrita de forma muito lenta, às vezes quase apática – mas ao mesmo tempo, um uso perfeito da linguagem, e os temas sobre os quais ela escreve são daqueles de lascar com a cabeça da gente. Por isso, não dá outra: Lionel Shriver lançou livro novo, ele já pega o caminho da minha casa.
Mais recentemente, me interessei pela literatura da escritora espanhola Sara Mesa quando li uma apresentação feita por ela para a nova edição dos contos completos do Julio Ramón Ribeyro, escritor peruano que ambos admiramos. Vi por lá que ela escreve ficção e pronto, comprei um de seus romances, Un amor, e depois comprei seu livro de contos e outros romances. Com todos os seus livros de ficção na estante, peguei o primeiro que havia comprado para ler, certo de que ela seria, como de fato se tornou, uma escritora cuja carreira acompanho de perto.
Em comum, essas três mulheres, cujas obras acumulei antes mesmo de lido o primeiro livro, têm o fato de terem me arrebatado por razões dificilmente explicáveis. Li sobre cada uma delas, sobre a relevância de suas obras, os temas a partir dos quais criam suas literaturas – e aqueles pedaços de informação, capturados pouco a pouco, se expandiam dentro de mim em certezas: eu sabia que gostaria de seus livros, sabia que me tornaria leitor delas – e assim foi. Penso mesmo que o único tipo de presente que eu sei dar de verdade são livros. Roupas, perfumes – e melhor não, também, dizem que dá azar e vai que – acessórios – sou uma lástima. Mas livros... ah, os livros! Agora também não venham dar uma de gaiatinhos e me pedir livros de presente.
Mas para quem quiser uma consulta livresca oracular, só chegar. Aproveite enquanto é de graça, hein?, porque mais pra frente, seguindo a onda coach aparentemente para sempre em vigor, ainda hei de fazer dessa habilidade um case de sucesso.