Pássaro peregrino
Abecedário na escola, redação elogiada pela professora, verborragia paterna, silêncio materno, brincadeiras (devidamente gritadas) na rua, os berros pela vizinhança — não é de hoje que o mundo se derrama em mim nas formas da linguagem, empapado que sou pelas palavras e os terremotos que elas criam.
Terminar o doutorado me fez olhar para trás e repensar tudo isso. O Paulo que se sonhou doutor em 2012 já não é o mesmo de hoje, mas o medo dos ciclos não fechados, o amor à literatura e a minha vaidade me levantaram do chão. Fiz a travessia a que me lancei.
A minha mãe sempre dizia, ali pelos meus 13 anos: “Vai ler um livro, menino”. Eu não queria. Detestava mesmo. O meu desejo mirava a vida na rua, as suas palavras, sons, silêncios, brincadeiras, o seu encanto dinâmico e vital. Estar em casa (e lendo!) era uma perda de tempo para o adolescente sem-livros que fui.
Entretanto, aquele menino amou cedo e errado demais. Começou a escrever poemas para esconder dor e medo. A partir daí, a linguagem dos poemas ganhou a atenção do meu desejo, me tirou da rua, me deu teto e tudo. Talvez por isso a minha trajetória acadêmica tenha sido nos estudos de poesia. Não sei. Ou sei e me faço de sonso, contra mim mesmo.
A casa materna guarda metade da minha biblioteca, que ainda não consegui trazer inteira para Madri. Ela, a mãe, já se queixou dos meus livros. Reclamou até desistir e (talvez arrependida?) pegar um para ler: O menino no espelho. A forma que encontrei para homenageá-la foi dedicar toda a minha tese a ela, minha mãe, princípio e fim da minha linguagem.
O que sinto agora: é o alívio dos pés passada a peregrinação, água a golpes que sai de um peito afogado. Estou tão grato que me sinto um pássaro: aéreo e livre para retornar ao grande conselho materno.