Sonho americano?
Constantemente, os Estados Unidos são apresentados como uma terra de oportunidades, de sonhos realizados e encanto; um Eldorado de braços abertos a todos os que desejam conquistar o paraíso e tomar assento no Olimpo dedicado aos vencedores.
Entretanto, há outra face do sonho americano com tons menos solares e felizes, um sonho gris com tons de morte, miséria, vício, sexo e loucura. A essa face decadente e obscura do american way of life é objeto dos onze contos de Filho de Jesus, o quinto livro de Denis Johnson, cujo título é tirado de um dos versos de Heroin, canção do The Velvet Underground.
As frases curtas, os diálogos afiados e as tramas peculiares e inusitadas percorrem espaços sujos, hospitais psiquiátricos, bares e lugares inusitados, distantes das casas de madeira aconchegantes, ricamente mobiliadas, cheirando a felicidade e riqueza, dessas que são exploradas pela litertura e cinema como fachada para problemas familiares e da classe média estadunidense. Aqui o espaço é deslocado para aquilo que se esconde, os problemas mentais, o abuso de drogas e bebidas, a loucura, a velhice. E tudo narrado através de um caledoscópio de alucinações e experiências vívidas, inconformadas e cinismo.
As cores variam entre o cinza, o preto e o branco, sem uma cartela ampla e animada, sem resquício de esperança ou redenção. Os contos começam, divagam e acabam, sem desfecho, sem a necessidade de desfecho lógico e/ou satisfatório. A vida pela visa, sem roteiro, sem plot twist, sem emoções açucaradas. Nesse sentido, o narrador segue no automático, sendo transportado de um ponto a outro, de um momento a outro.
Em Desastre de carro no meio da carona, o conto de abertura nosso narrador toma uma carona num carro com uma "família tipicamente americana" em meio a uma viagem cheia de haxixe, uísque e anfetaminas. Enquanto, narra a sua vida perfeita, ele nos lembra como foi parar ali naquele carro, e, após a tragédia que ceifou a vida da família, ele segue desnorteado sem entender com exatidão entre a realidade e o delírio. Esse contraste entre a face dourada do sonho americano e de sua face oculta anuncia o lugar em que se encontra o protagonista, bem como o ponto de vista do que virá a seguir.
A cada conto um novo desconforto, uma nova ironia, um sorriso desconcertado ante o politicamente incorreto, os desfechos autênticos e imprevisíveis. Aliás, o imprevisível e o inusitado percorrem a narrativa do início ao fim. Não espere contos lineares, certinhos, ajustados a um certo gosto comum. Johnson trata as paixões humanas desse lugar entorpecido e aberto a uma outra forma de transcendência ativa pelo álcool, heroína, haxixe, doce, ópio e sexo.
Se, apressadamente, se coloca esse lado obscuro do sonho americano como ruim, Johnson revela que as mesmas dores e lástimas de um lado também estão no outro. A vantagem de um lado sobre outro é viver tudo isso entorpecido em drogas e álcool, diferente do outro lado que se entorpece num modelo ideal de felicidade, na alienação religiosa e no ideal inalcançável de felicidade. É das trevas que enxergamos um marido lavando os pés da esposa, a violência do abandono e da indeferença, a perspectiva do nascer e do morrer.
Tudo isso somado a destreza literária de Denis Johnson fazem de Filho de Jesus um daqueles livros memoráveis que deixa a gente ruminando tentando entender o que aconteceu e acabou de ler. Todos os contos mostram um equilíbrio, em termos de qualidade e ritmo, mas destaco como favoritos o já citado Desastre de carro no meio da carona, Dundun, Emergência, Casamento Sujo e Berverly Home.