Embalando a minha biblioteca
Em 2015, Alberto Manguel, um dos grandes escritores e bibliófilos argentinos, mudou-se da França para os Estados Unidos. Manguel sempre teve uma vida nômade junto a seu companheiro de muitos anos, portanto, mudarem-se era algo esperado; a novidade era que não havia como levar sua biblioteca, de cerca de 35 mil livros, para Nova York. Sem solução à vista, Manguel precisou encaixotá-la. Esse périplo resultou no livro Encaixotando minha biblioteca, de 2018 – e anos depois, numa nova mudança – segundo ele, a última – a biblioteca foi doada para a cidade de Lisboa, onde ficará no Centro de Estudos de História da Leitura.
A obra de Manguel, a qual ele deu o subtítulo de “uma elegia e dez digressões”, é sobretudo uma declaração de amor aos livros, uma ode ao gesto da leitura e ao objeto para o qual aquele ou aquela a que se denomina leitor dedica, muitas vezes, uma vida inteira.
É pensando nesse livro – do qual pego emprestado o título da edição portuguesa (e jajá explico a razão) – que volto o olhar para a minha própria biblioteca. Bem mais modesta, é verdade, com seus cerca de 5 mil volumes, mas talvez seja, simbolicamente, o que melhor me representa no mundo. Ela é resultado de décadas de vida, mas não é um somatório imprudente, muito pelo contrário: os livros que tenho hoje são fruto de anos de diligente separação entre o que me tornou quem fui daquele que sou – e seguirá sendo assim até que eu não exista mais para fazê-lo.
A questão é que vivo agora o mesmo dilema de Alberto Manguel: preciso me separar dos meus livros. Residindo atualmente numa casa onde não cabem todos, cedi a esta invenção estadunidense a que chamam de “auto-armazenamento”, que nada mais é do que o aluguel de um contêiner onde eu posso colocar o que não couber no lugar onde habito. Encaixotados e ensacados, um caminhão repleto os levou para este outro lugar, longe de mim, onde ficarão empilhados até que eu vá para uma casa onde eles caibam novamente.
Alguém, provavelmente sem coração, dirá: É muito mais fácil doá-los a uma biblioteca, ao Emaús, abandoná-los em praças, cafés, Ubers, dá-los aos amigos – e nem duvido que haja quem diria: Seria mais fácil fazer uma imensa fogueira! Chamo então Umberto Eco em meu socorro – veja, quem lê não tem amigo ordinário – , que contava a seguinte anedota: quem o visitava e conhecia sua biblioteca, de cerca de 30 mil livros, se dividia basicamente em dois grupos: um que olhava para seus livros e dizia “Uau! Signore professore dottore Eco, que biblioteca o senhor tem! Quantos desses livros o senhor já leu?”, e os outros — uma minoria ínfima — que entendem que uma biblioteca particular não é um apêndice para elevar o próprio ego, e sim uma ferramenta de pesquisa, e também um lugar de paz e contemplação. Livros lidos são muito menos valiosos que os não-lidos (portanto, nada de se sentir culpado por fazer mais uma compra antes de ler aqueles 647 livros ainda não lidos pelas casa). A biblioteca deve conter tanto das coisas que você não sabe quanto seus recursos financeiros lhe permitam colocar nela. Você se abastecerá de mais conhecimento e mais livros à medida que for envelhecendo, e o número crescente de livros não-lidos nas prateleiras olhará para você com desdém ou em tom de ameaça. E o que importa? Encare de volta. Um abismo que olha outro abismo cria uma imagem de espelhos, e um dos dois se torna firme chão. De nada importa que os livros por ler se amontoem para além das estantes e prateleiras, que fiquem pelo chão, nos cantos da casa, nas costas do gato. Na verdade, quanto mais você souber, maiores serão as pilhas de livros não-lidos, porque, como diz o poeta Robert Frost – eu falei que não tenho amigo ruim! – “um caminho outro caminho gera”: um autor querido leva a outros livros do mesmo autor, a autores que você descobre que são semelhantes depois daquela conversa no bar ou na casa de algum amigo comentando sobre o tal do autor querido, e depois você quer ler a biografia, ler sobre os assuntos sobre os quais o autor querido pesquisava, o que te leva a novos escritores, escritoras, e de fato a coisa toda se torna um poço sem fundo.
Agora imagine essa separação depois de tantos anos convivendo juntos – nesta que é, sem dúvida, a relação mais longeva que tenho na vida? É como olhar um vitral numa imensa catedral, reparar em cada detalhe do qual ele é constituído, e de repente, afastando a cabeça para olhar um pouquinho mais para o lado, você percebe que há vários pedaços faltando. Que outras partes têm buracos causados por pedra do meio da rua ou por pedra vinda do espaço, não importa também. É falta, é ausência, é tristeza – que não tem fim, como dizia o outro poeta, este, por sinal, bem brasileiro – e a felicidade, que tem, que é tão fugaz, precisa ser restabelecida, minha gente!
E, por agora, estou como o Manguel: sem alternativa. Por isso resolvi dar a esta crônica o título do livro dele na edição de Portugal. Embalar, que é sinônimo de embrulhar, revestir, até do encaixotar do título da edição brasileira, vá lá, é também acalentar, afagar, tranquilizar. E não tem como estar tranquilo dormindo separado da minha biblioteca. Estou quase apelando: vou fazer uma rifa, um bingo, bambulim, abrir uma conta no Catarse. Das recompensas nada sei, não prometo o que não posso cumprir, mas é tudo em nome de um lugar para a minha bibilioteca existir perto de mim, ô dó.
E (ainda) não tenho o desprendimento do Manguel e doar todos os meus livros para algum lugar ainda em vida. Inclusive porque estou sempre voltando a uns e outros. E apesar de agnóstico, tenho planos de ver de algum camarote celeste a festa que já encomendei para depois que eu desembarcar: em teoria, quando se cumprirem os sete dias depois que eu tiver virado pó, quero todos os meus amigos se reunindo com bebidas, salgadinhos e bolo para celebrar a amizade que tivemos. Não serão muitos, o que garantiria a possibilidade de que eu sempre poderia morar num lugar pequeno – não fossem, novamente, os livros. De todo modo, enquanto conversam, comem, talvez ouvindo uma música ao fundo, tudo coordenado por quem for exercer a viuvez e algum amigo ou amiga mais desprendida, tal hora os presentes serão avisados de que podem levar um total de cinco livros da minha biblioteca. Quem levar uma ecobag poderá levar seis – um bônus para os politicamente corretos que eu não terei sido porque me faltou evolução espiritual – e só. Não quero ninguém chegando no evento com um carrinho de mão, baús com rodinhas ou uma picape estacionada na frente, feito caminhão de mudanças. Só cinco livros, para quem foi meu amigo a vida inteira? Só, ué, e eu lá tenho que deixar herança pra amigo além das boas e más lembranças? O resto, quem dormia na cama ao meu lado até ali que decida o que fazer, depois de escolher os que quer para si – sem limites pra sonhar.
Só então, terminada a efeméride, eu estarei pronto para me separar dos meus livros. E depois, estalando os beiços e a língua desejando comer uma das coxinhas servidas no evento, eu darei as costas e seguirei rumo à biblioteca do Paraíso, onde me sentarei em alguma nuvem confortavelmente e ficarei lendo e relendo tudo o que me for possível, até o infinito.