O que permanece daqueles que não ficam, crônica de Marco Severo
Quando eu era criança, achava que as pessoas ao meu redor estariam sempre lá, existindo naquela forma e corpo que chegavam a mim de maneira imutável ainda que eu crescesse – e eu sabia que cresceria, embora não soubesse o quanto, nem para onde; alguma forma de crescimento me havia sido prometida e era nesse futuro onde estaríamos todos, inalterados.
Então o Chacrinha morreu – e eu percebi em criança pela primeira vez que quem está na nossa vida pode sair sem aviso. Chacrinha foi, bem sei, parte formadora da minha personalidade, e o quanto de sua morte pesou em mim é algo que ficará espalhado aqui por dentro sem que eu possa juntar para mensurar.
Foi mais ou menos nessa época que meu pai comprou uma cachorra e a trouxe dentro de uma caixa para mim e para a minha irmã. Era tão pequenina que minha mão ainda sem vincos podia cobri-la por inteiro. Sentia-a tremendo sobre os pedaços de pano em que ela estava colocada ali dentro, e ouvi seus gemidos transformarem-se em sussurros de prazer quando meu calor tocava o seu corpo sem mãe. Disse que atendia aos nossos desejos – o que era verdade – e para mim, que tinha mãe, disse que ter uma cachorra nos ensinaria a termos um senso de responsabilidade, quando na verdade aprenderíamos a amar algo que não fosse outro ser humano com a mesma força, ou até mais, do que seríamos capazes de amar um semelhante. Era essa a potência do que estávamos começando a viver com a entrada de Suzy em nossas vidas.
Enquanto eu crescia Suzy envelhecia. Até chegar a idade de perdê-la, eu já havia compreendido que não só a morte nos tira, mas a própria vida cotidiana: as primeiras paixões, os professores inesquecíveis dando lugar a outros, esquecíveis ou não; amigos que mudavam de escola, primos que eram muito próximos e se distanciavam, meus avós cujo esfarelamento da sanidade fragmentava suas existências ao ponto de quase torná-las o avesso de ser.
Pode ser dolorido pensar na impermanência, retratos desbotados de momentos com pessoas que a partir de um certo ponto só passam a existir dentro da gente. E isso é apenas um dos pedaços do mosaico que somos, de que somos feitos.
Mas há também um outro tipo de impermanência: a daqueles que vêm e ficam brevemente, e que são, lamento informar, caso você nunca tenha pensado sobre isso seriamente, a maioria.
Foi quando eu estava perto de deixar a vida escolar que Náila chegou. Entrou no meio do semestre, com a saída da professora de redação anterior por motivos que nunca ficaram claros. Ela tinha um corpo pequeno, mirrado, e enormes traços dos povos originários. Soube depois que seus avós eram indígenas, e eles estavam completos nela. A turma não parecia querer aprender a escrever melhor, e para ser sincero, nem eu. Não ali, naquela sala um pouco escura, e com tanta gente desinteressada que o ambiente se tornara desconvidativo. Mas eu nunca deixei de estar atento a uma boa história, e Náila tinha muitas. Quando soube que eu gostava de ler sua atenção voltou-se para mim. Seus belos olhos de mulher indígena, alinhados a uma voz amorosa e firme, me seduziam a cada história narrada, como um cântico. Com os passar dos dias, no entanto, eu via Náila mais e mais agitada, os cabelos negros e lisos esvoaçando como a corroborar o pensamento, quando então ela só se acalmava ao começar a contar suas histórias de rios e florestas de alguma região nos confins da Amazônia, de onde era.
Envolta em mistérios, não respondia quando eu a perguntava como fora parar em Fortaleza, ou como se tornara professora. Por outro lado, se perguntada sobre livros e escritores, falava como dique aberto, apesar da sua introspecção que, para quem nunca a tivesse ouvido falar, poderia parecer uma enorme timidez. E timidez talvez fosse, mas não imensa, ou pelo menos não que a impedisse de querer interagir com o outro.
Então chegou o dia em que ela entrou em sala de aula olhando direto para mim. Você já leu Borges?, quis saber. Não, nunca. Perguntou se eu sabia quem ele era. Respondi que sim, e era verdade. Só nunca havia lido nada dele porque era considerado um escritor difícil e eu achava... Ora, não ache nada sem tê-lo lido!, ela disse. Ele não é um escritor tão fácil, há inúmeras camadas, mas é preciso começar a lê-lo, Marco. Você faz agora aos 16 anos a leitura possível. Quando tiver mais leituras, você pegará este livro novamente, e outras possibilidades se apresentarão. É assim que funciona com os bons livros. Ela me entregou, então, o livro que trouxera consigo: O livro de areia. Trouxe este livro para emprestá-lo. Leia-o com vontade. Ou, como vocês dizem por aqui, com gosto. Eu agradeci, ela fez mil recomendações para os meus cuidados com o exemplar, que guardei na mochila dentro de um livro didático maior, e saí da escola ciente de que havia um deus literário a descobrir.
Então, na semana seguinte, a professora Náila não veio. Nem na outra. Na terceira semana, uma outra professora apareceu em seu lugar. Ninguém parecia estar disposto a nos dizer o que havia acontecido, perguntar a qualquer funcionário era como inquirir paredes.
Quase um mês depois, ao atender o telefone de casa, ouço uma voz, que me diz, Marco, você já leu o livro do Borges? Assim, sem maiores apresentações, quase como vinda do além. Estou lendo. Quem é? Sou eu, Marco, a Náila. Lembro que meu coração vibrou. Sim, claro que era ela, como eu poderia não ter reconhecido? Vibrei, e ela percebeu pelo meu jeito de jovem apaixonado. Até que: Eu quero meu livro de volta. O corte súbito me pareceu quase um ataque. Eu vou devolver, professora, pra quando a senhora o quer? Para amanhã, ela disse. Eu sabia que não conseguiria terminar de ler aqueles contos densos até o dia seguinte. Ela me pediu para deixar o exemplar na secretaria da escola no dia seguinte, ela passaria lá para buscá-lo. Ao me despedir da professora, sabia que também me despedia do livro. Mais de dez anos se passariam até que eu conseguisse terminar de ler o meu primeiro Borges.
Mais de vinte anos depois, o acaso trouxe novamente a presença que o coração nunca esqueceu.
Eu estava no corredor de uma Bienal de livros quando a vi, parada. Confirmei que era ela ao perguntar seu nome. Ela também se lembrava de mim. Falei então sobre o livro de Borges, de quem hoje sou leitor. Os lábios se esticaram no rosto, num imenso sorriso. Ela me abraçou, disse que ficou feliz pelo encontro, mas quando perguntada sobre a possibilidade de manter contato, disse que não tinha redes sociais e antes que eu pudesse pedir seu telefone, ela disse, Eu estou no seu amor pelos livros, Marco.
Náila preferiu ser memória, jeito dela de eternizar-se em mim.
Que sorte sempre ter tido professores que envolveram minha vida com a vida dos livros.