Meu amigo Carlos
Carlos, cheguei!
Como estão as coisas? Há tempos quero te escrever, mas só agora consegui a oportunidade para isso. Como tem passado?
Cheguei há pouco e da Bahia já me despedi. Vim como manda o figurino. Pedi benção aos orixás, pisei com o pé direito quando saí do avião e agradeci ao Nosso Senhor por me receber de braços abertos. Não sei se acredito muito em religião, mas como típico mineiro que sou, achei por bem pedir licença. Mas não foi fácil chegar aqui, Carlos. Tive diversos empecilhos e atrasos. Algumas pedras no caminho, sabe? Mas depois de muito pensar, resolvi. E agora estou aqui. Será que posso dizer, finalmente?
Sei que você chegou ao Rio com 32 anos. Eu só consegui chegar agora, aos 42. Cheguei tarde, Carlos? Ou são apenas outros tempos? Às vezes, acho que cheguei tarde. Mas tento não pensar muito nisso. Até porque, o tempo não volta mesmo.
Temos algumas coisas em comum, acredita? Também sou funcionário público, também uso óculos, tenho aquele "hábito de sofrer, que tanto me diverte”, tive gado, tive fazendas, avô rico também tive. E assim como Itabira, Nanuque será, com o tempo, apenas uma fotografia na parede.
Mas estou gostando da nova situação. O apartamento é bom e perto de tudo. Logo em frente, nos dias de domingo, tem uma feira. Feira mesmo, dessas com bancas de madeira com frutas, raízes e verduras. Daquelas como antigamente, com aquele burburinho bom das pessoas verificando e perguntando o preço de cada coisa e que meu avô costumava me levar. Tem até o famoso pastel com caldo de cana. E de banca em banca me alumbro com perfumes e cores diversas.
Interessante isso, não é Carlos? Já parou pra pensar em como a vida vai se construindo e, de repente, você se depara com coisas que até então nem lembrava mais? Quando é que eu iria adivinhar que estaria caminhando por entre bancas de feira, com uma sacola repleta de legumes e verduras, e ainda por cima, ter consciência do preço do alho, mandioca ou da dúzia de ovos! Mas apesar do espanto, eu me sinto feliz, sabe? E o motivo é que ao ouvir algum verdureiro falando “olha aqui, senhor Alberto”, eu me vejo seguindo os passos do meu avô. Eu acho tão bonito isso que, vez ou outra, o olho se enche de mar.
De vez em quando saio para espairecer um pouco. Caminho pela rua do Catete até o Largo do Machado. O barulho das ruas, seus transeuntes e ambulantes, é tudo tão diferente, Carlos! Às vezes, eu fico até meio zonzo. Nesses momentos paro numa banca, compro uma revista e me sento numa boa cafeteria. Ah, como eu gosto disso!
Depois volto para casa. Sente falta de casa, Carlos? Eu sinto. Da minha antiga casa, lá em Nanuque. Sabe aonde fica, né? Você até já escreveu, lá em 65, sobre um certo José Pedro dos Santos de Nanuque, que morava numa mata e acendia um facho luminoso certas noites para espantar onça. Tá lembrado dele? Agora já mudou muito. Quase não tem mata lá. Tem só umas matinhas mesmo. Mas acho que só tem passarinho. E pouco. Não tem nem onça e nem ninguém que mora nelas não. Nem para pegar lenha tem mais. Foi o progresso que mudou tudo. Agora tem é eucalipto a dar com pau. Muito mesmo.
Mas ainda tem o boi. Sempre teve boi. Assim como o ferro de Itabira, o gado de Nanuque sempre foi levado pra longe. Durante meu tempo de menino vi comitivas e mais comitivas desfilarem em frente à minha casa, com o gado passando num trote suave. Mas hoje não passa mais não. Hoje seguem de carreta. Comitiva foi só na infância mesmo. Uma infância quase antiga da qual me orgulho muito, sabe? De brincar com os pés na terra, com os cachorros da vizinha, de jogar bola de meia na copa da minha avó e correr na rua.
Aonde quer que eu vá, levo a memória desse tempo comigo. E tem como ser de outra forma? Foi em Nanuque que nasci e me criei. Lá meus valores foram construídos. Meu alicerce, entende? E mesmo que eu não caiba mais em Nanuque, ela cabe em meu peito. E quando a saudade aperta demais, daquele jeito que o coração parece que vai pular para fora do peito, eu corro até o supermercado mais próximo e compro um queijo e um pote de doce de leite. Não é lá grande coisa para matar a saudade, mas ajuda bastante.
Sabe o que é engraçado, Carlos? Ao descrever a minha infância, tão rica, e também já virtualmente distante, parece que estou roubando a biografia de outra pessoa. Não sei dizer o porquê. Talvez seja apenas saudade. Minha família costuma contar um caso engraçado. Dizem que nessa época me perguntavam “O que você quer ser quando crescer?” E eu dizia “Carioca”. Contam esse caso até hoje guardando um pedacinho daquela antiga satisfação de verem um menino, de tão pouca idade, tão astuto. Eu não me recordo dessas coisas, mas acredito neles. Será que eu já estava antevendo o destino desse pobre mineiro que vos escreve? Que, assim como você, teve de sair para ares maiores para poder se lançar em voos mais altos? Bem, por destino ou coincidências, cá estou.
E aqui na Cidade Maravilhosa eu tento me encontrar.
Até mais, Carlos.
Um abraço, Alberto.
Alberto Lacerda
Nascido em Nanuque, Minas Gerais, em novembro de 1978, Alberto Lacerda é poeta, cronista e contista. Geógrafo de formação, cursou faculdade em Belo Horizonte, onde viveu por 14 anos. Em 2014 mudou-se para Salvador, BA
e desde então, passou a ser publicado em diversas coletâneas e revistas literárias. Desde 2016 suas crônicas são publicadas no jornal Em Tempo, em sua cidade natal. Foi selecionado no Prêmio Sarau Brasil – Novos Poetas, 2017, pela Editora Vivara, e possui diversas publicações em antologias. Teve a crônica “Senhor” publicada na Edição Especial da Revista Contos e Letras na Bienal do Rio de Janeiro em 2017 pela Editora Illuminare. Em 2020 foi vencedor de dois prêmios literários com o seu primeiro livro Crônicas do Cotidiano. Melhor livro, na categoria crônicas, na 2ª edição do Prêmio Book Brasil e na 5ª edição do Prêmio Brasil Entre Palavras. Os prêmios tiveram como objetivo o incentivo e a divulgação de informações que promovessem e valorizassem a literatura brasileira, seus diferentes gêneros literários e seus autores. Em 2021 foi selecionado para a antologia de Poesia Brasileira Contemporânea (editora Chiado Books) com a poesia “Depois da Hora de Dormir”. Nesse mesmo ano lançou seu segundo livro de crônicas Parte de Mim. Hoje mora no Rio de Janeiro e tenta conciliar o trabalho, a escrita e a paternidade.