Quando olhar para trás significa andar pra frente
Uma das perguntas que mais ouço outros escritores se queixarem de receber em eventos públicos é de onde vêm as ideias para as histórias que contam e publicam em livros. Como nenhum deles tem uma resposta que dê conta do tamanho da pergunta, acham que pode parecer que estão querendo guardar segredo e soarem (emudecerem?) antipáticos.
Não sei bem o que se passa na cabeça dos meus leitores, mas quase dez anos depois do meu primeiro livro, acho que essa pergunta foi feita a mim não mais do que um par de vezes. Na maioria dos casos, minhas leitoras e leitores querem conversar a respeito dos enredos dos contos, dos destinos dos personagens, daquilo que entenderam, ou como tal história os tocou.
Eu também não tenho resposta, claro, e vasculhando meus cadernos onde anoto ideias para utilizar posteriormente em busca de alguma para crônica que me despertasse o interesse, acabei por me deparar com trechos inteiros de textos escritos há oito, nove anos, misturados a ideias mais recentes, de poucos meses atrás. Na coivara da memória, o sentimento – antes uma constatação, e não um arroubo de nostalgia – de que aquelas anotações haviam sido feitas num outro tempo, anterior ao horror que se seguiria pelo mundo com a ascenção da extrema direita em muitos países, novos conflitos bélicos e o aumento da fome a despeito dos recordes de produção de alimento.
Decidi então que o melhor a fazer é não dar vazão a novas ideias. É certo que novas situações/frases/imagens que resultariam em novas crônicas, contos, novelas, poemas, peças, continuarão a surgir, na maioria das vezes como se saltassem para a minha cabeça. Anotarei cada uma delas – ainda que certo de que jamais terei tempo de vida para escrevê-las todas; aliás, uma certeza que tenho hoje, a respeito das que já tenho anotado até aqui. Também não quero falsear uma pretensa forma de parar o tempo, fingir que tudo o que se viveu não existiu. Estou inserido demais na realidade para negá-la, e se estou vivo foi porque pelejei muito com a Morte e até esse instante ela não ousou ultrapassar o limite riscado a faca no chão. Não sei se há um motivo claro para isso – afinal, sabemos quem vencerá a luta – , há quem dirá acreditar em sorte, outros em deus, eu diria que há um pouco de sorte e de deus e mais pra frente quando a ciência se fez presente, foi ela quem se impôs, e assim fomos saindo todos de debaixo dos escombros até o lugar onde estamos agora, o de reaprendizado. Reaprendemos a viver e a viver em sociedade, como quem reaprende a caminhar depois de um acidente quase fatal, cientes de que para muitos foi fatal – sem sequer ter sido acidente.
A despeito do horror o Brasil recomeça, agora eivado de Esperança, essa entidade-fênix, que aparece antes de tudo e depois de tudo, enquanto se vive o meio da forma que é possível.
É preciso abraçar novas ideias, por certo. Dar-lhes asas, fazê-las voar. Eu, no entanto, sigo folheando meus cadernos e arquivos antigos cheios de ideias para histórias que merecem ser contadas. (Algumas, quando reli, vieram inteiras em minha memória). Vou viver este novo presente seguindo em direção ao futuro com a certeza não de quem olha para um outro tempo, onde esta mesma memória inventa que tudo era melhor. Vou adentrar o futuro lembrando que ideias são sobretudo uma imensa possibilidade de deslocamento. Para passar a dizer algo, uma ideia precisa ser transformada através da ação. No meu caso, da escrita. Como povo, da capacidade que temos de impulsionar ideias, conjurando-as, e torná-las atos significativos.
Este ano, quero finalmente passar a escrever as histórias que recolhi dentro de mim durante tantos anos, transformá-las em algo novo, que verá a luz do dia em noites de lançamento nas quais reunirei amigos e leitores em festa.
Pegar o que era bom e reconstruir – não é algo nesse sentido o lema do Brasil que se anuncia?