Surrealismo, delírio, opressão e renascimento
Um conto de fadas mexicano e outras histórias é a primeira publicação brasileira da obra literária da inglesa, radicada no México, Leonora Carrington. Carrington nasceu na Inglaterra em 1917. De família abastada, desde cedo, percebeu não se encaixar nas convenções sociais demandas para as mulheres. Aos 19 anos, iniciou um relacionamento com o pintor Max Ernst, dado tamanho fascínio por sua obra. Viveram no sul da França até junho de 1940, quando a ocupação nazista a fez fugir, chegando a cidade espanhola de Santander, onde acabou em um hospital psiquiátrico após sofrer um colapso emocional. Passou um período em Nova York, mudando-se, no final de 1942, para a Cidade do México, escolhida por diversos intelectuais e artistas (como D. H. Lawrence e Aldous Huxley), na qual viveria até sua morte em 2011.
Leonora Carrington é mais conhecida como artista
plástica, sendo uma das poucas pintoras e escultoras que se filiaram ao
surrealismo. O surrealismo foi um movimento artístico nascido na França, no início do século XX, fortemente influenciado pelas teorias
psicanalíticas de Freud, e com foco no inconsciente. Com nomes predominante masculinos (Salvador Dalí, Marcel Duchamp, Tristan Tzara, Max Ernst, dentre outros), não ficou restrito às artes plásticas, repercutindo na literatura, teatro e cinema. Carrington é um dos poucos nomes femininos no movimento, cuja fidelidade manteve-se até o fim da vida.
Cada conto começa e se desfaz em imagens, cenas, interrogações. Tão forte quantos surpreendentes, comovem e fazem florescer emoções que inspiram, constrangem, coagem em medidas exatas e inexatas. Há angústia, urgência, melancolia e vida, crueza e realidade amalgamados ao onírico e delirante.
Os contos são habitados animais falantes (hienas, cavalos, pássaros, lobos), criaturas noturnas e mágicas, pessoas arrogantes e elitistas, narradoras inquietas, curiosas e questionadoras. Destaque-se que nada permanece na mesma ou em uma única forma, tudo é fluído, desconcertante, revelador. Homens tomam a forma de lobos, irmãs adquirem formas e apetites animalescos, amantes fundem-se num só corpo, cavalos trabalham por dinheiro, pássaros vestem batinas e roupas puritanas. O fluxo percorre o que se é, o que se finge ser e o que se pretende ser.
Em A debutante, conto que abre a antologia, temos uma menina coagida pela mãe a participar de seu jantar de debutante. A garota avessa às convenções que aprisionam a mulher elabora um plano inusitado, convidando uma hiena que conheceu no zoológico a substituí-la na festa. O conto encontrou inspiração num episódio da vida da própria Carrington forçada pela mãe, na condição de única filha entre três irmãos, a participar de sua festa de debutantes. O espírito livre e impetuoso da autora encarna em sua narradora.
A dama oval a narradora encontra uma dama sozinha numa sala, tristonha, lamenta a morte de Tártaro, seu brinquedo favorito. Os caminhos e as escolhas da autora surpreende a cada virada, indo desde a perspectiva do fim da infância ou da morte da capacidade de imaginar e abraçar o insólito e fantástico como possibilidades do real.
Esse desencanto com o consciente e abraço ao subconsciente, com o real em desfavor do onírico permeiam cada um dos contos. Em O chamado real, uma convidada da rainha joga damas com ministros para decidir qual deles conduzirá a monarca à jaula dos leões. Em Et in bellicus lunarum medicalis uma equipe de ratos cirurgiões é enviado pela Rússia como presente, sendo enviado de um a outro lado por médicos ultrajados com a dádiva demasiado despudorada.
O olhar de Carrigton é perspicaz, angustiado, cônscio dos limites da existência e, por isso, revolucionário, propondo uma necessária ruptura. Nesse sentido, expande pela e através da arte o que não cabe (e não tem como caber) no plano físico. Portanto, propõe um modo de transcender a percepção e experiência humanas.
A precisão de sua escrita, a correnteza com que narra e descreve e detalha e força a imaginação conduz a lugares tão íntimos e espantosos, sendo merecedora de cada minuto dedicado a página. Carrignton constrói esse castelo cercado de ciprestes medonhos e bravos, ergue monumentos para adoração e coloca assentada no trono o Medo, com sua cara de cavalo, seu vestido de morcegos vivos e seu grande e único olho negro, centralizado no rosto, atento ao menor de nossos movimentos.