Minha vida de rata, de Joyce Carol Oates.
O romance Minha vida de rata, da estadunidense Joyce Carol Oates, chega aos leitores e leitoras brasileiras. Inicialmente lançado pela TAG Livros, e agora com edição da HaperCollins Brasil, com tradução da escritora Luisa Geisler. Aliás, a editora vem relançado títulos da escritora com novos projetos gráficos e traduções.
Joyce Carol Oates é uma das escritoras mais produtivas na contemporaneidade. Desde o seu primeiro livro, lançado em 1963, publicou 58 títulos, entre romances, ensaios, contos, peças, poesia e crítica literária. No Brasil, temos publicado apenas livros de contos e romances, de modo difuso, por editoras variadas (Globo, Alfaguara, Record, Darkside, dentre outras) e com a ausência de livros importantes de sua bibliografia.
Diante disso, a publicação de Minha vida de rata, tão próxima de seu lançamento nos Estados Unidos, com tradução e projeto editorial cuidadosos parece um bom sinal.
Sobre a autora
Segundo o perfil publicado pela Darkside Books, foi por influência da avó materna que descobriu o gosto pela leitura e pela escrita, num encontro decisivo com o Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. A esse respeito, já declarou: "Nos livros de Alice há um anseio por justiça e ainda há injustiça, um texto realmente subversivo. Um clássico para crianças que também está preocupado com morrer, morte, e ser comido; talvez mais apavorante, sendo fisicamente transformado em formas bizarras".
Na adolescência ampliou as suas referências, incluindo as obras de autoras e autores como Charlotte Brontë, Emily Brontë, Fiódor Dostoiévski, William Faulkner, Ernest Hemingway e Henry David Thoreau, mesma época em que, aos 14 anos, começou a escrever, quando sua avó lhe presentear com uma máquina de escrever. Durante seus estudos universitários na Universidade de Syracuse, onde escreveu romance após romance e apenas para descartá-los após terminados, começou a ler a obra de Franz Kafka, D. H. Lawrence, Thomas Mann e Flannery O’Connor, que se somaram a seu panteão de referências.
Quanto aos temas de sua obra, o perfil da Darkside Books destaca: "A violência é um tema recorrente nas obras de Joyce Carol Oates, que baseia muitos acontecimentos de seus personagens em situações reais que chegaram ao conhecimento dela. Pobreza na área rural, abuso sexual, tensão de classes, desejo de poder, amadurecimento feminino e eventos sobrenaturais são alguns dos tópicos presentes em suas histórias".
JCO também tem uma considerável carreira acadêmica, atuando como professoras universitário desde o ano de 1978, passando pelas Universidade de Detroit, Universidade de Windsor, em Ontario, Universidade de Princeton, em New Jersey, e, desde 2016, na Universidade de Berkeley, universidade pública, onde leciona escrita criativa para contos.
Lançou em 2019, seu curso de escrita criativa para contos na MasterClass, e, em 2021, foi lançado o documentário Joyce Carol Oates: um corpo a serviço da mente, dirigido por Stig Björkman, com narração da atriz Laura Dern. Aos 84 anos, Joyce Carol Oates segue ativa na escrita e nas redes sociais, em especial, no Twitter, com posts que vão da literatura à política.
Sobre o romance
Minha vida de rata acompanha a trajetória de Violet Rue Kerrigan, o xodó de um pai encanador, bêbado e ex-combatente no Vietnã. Os Kerrigans são uma daquelas famílias católicas irlandesas, cujo lar é marcado por uma subalternidade materna e feminina, e os filhos são estimulados à violência (como nas lutas pai vs. filhos) como tônica da masculinidade.
Dois dos irmãos de Violet, Jerome Jr. e Lionel, acabam por espancar até à morte um rapaz negro, conhecido como popular e atleta na escola. Junto a dois primos, eles o jogam para fora da estrada (o garoto vinha em uma bicicleta) e sem qualquer justificativa começam a espancá-lo. Ao chegar em casa, os irmãos são surpreendidos por Violet ao lavarem o carro e o taco de beisebol usado no espancamento e, em seguida, testemunha quando entram no matagal atrás da propriedade dos Kerrigans para esconder a arma do crime.
A notícia da morte do garoto, a comoção e tensão, corroem a consciência da garota de apenas 12 anos. Ela confessa ao padre que a aconselha a manter o silêncio, o que o faz até um momento de explosão acaba desabafando entre lágrimas e um estado de completo desespero. Sem perdão, Violet não tem mais uma casa para voltar, nem uma mãe que tome partido dela, nem o pai amoroso e idealizado em sua cabeça infantil, nem as irmãs mais velhas, tampouco os irmãos.
Algumas de minhas impressões
Há algo dito por Julia Scheeres, em sua resenha para o The New York Times, que gostaria de reproduzir aqui: "Há um 10º círculo no Inferno de Dante, e ele está localizado dentro da cabeça de Joyce Carol Oates. Conhecido como "Círculo da Virtude", que está repleto de mulheres e meninas que devem pagar pelos pecados de serem muito esperançosas, muito indulgentes, muito legais. Suas punições consistem em serem perseguidos por homens empunhando porretes priápicos que as cutucam e cutucam, incessantemente, eternamente."
Gosto desse trecho por capta bem a essência do que se segue. Não há descanso para Violet Rue. Vivendo numa outra cidade na casa de uma tia materna, a garota nutre a esperança de uma reconciliação. Enquanto isso, vai sendo surpreendida por uma sequência de violências e abusos. Em certa medida, moldam a culpa e revelam múltiplas faces dessa vulnerabilidade nutrida por medo e desejo de reconciliação.
A habilidade da autora de construir personagens somada a inclemência em expô-las a situações demasiado violentas surpreende. No mais, a herança católica de Violet faz com que abrace enquanto castigo justo todo o mal que lhe acomete. É doloroso ver como a vulnerabilidade da criança avança nos anos e se reflete na ânsia em ser amada novamente.
Oates conduz tudo com uma maestria, sem erros ou excessos. Aborda temas difíceis e diversos (masculinidade tóxica, relacionamentos familiares violentos, abuso sexual, racismo) sem fazer sequer um único juízo de valor. Usa as suas personagens e o enredo para fazê-lo. Diz nas linhas e entrelinhas e confia no leitor para que ele teça seus próprios julgamentos.
Essa foi a minha primeira incursão no obra da autora, e a julgar por esse romance, não será a última.