As memórias do livro
Suponhamos: o livro é um tipo de corpo e alguém faz dele carne no tempo; a materialidade das suas páginas está atravessada por memórias também materiais: marcas de caneta, post it, dobras nas orelhas, mancha de café, vinho ou suco, amassados diversos em forma e tamanho, além das usuais anotações. Tudo o que nos acontece no momento da leitura pode passar para o livro e deixar nele um registro – corpo e corpo.
Estes dias fui duramente criticado por fazer orelhas nas páginas de um livro que lia. Quando não tenho caneta ou lápis à vista dos dedos, dobro as pontinhas das páginas, de modo a não perder trechos que posso recuperar para um projeto de escrita ou simplesmente para reler. Tentei explicar esta minha necessidade à pessoa que me repreendeu, mas não houve êxito: trata-se de alguém que vê no livro uma espécie de objeto intocável, um corpo sagrado e, portanto, sem memória. Depois de comentar esse traço-cerne da minha prática de leitura, entendi que as necessidades pessoais devem apenas pairar sem metalinguagem.
Nem todos os meus livros estão marcados por memórias de leitura. Alguns eu leio sem esse ímpeto. Contudo, quando volto a um livro que li e vejo nele as marcas que deixei, lembro-me perfeitamente de quem eu era na altura, um homem muito diferente do que sou hoje, para o bem e para o mal. Aí está uma das funções da memória: marcar no corpo a metamorfose diária.
Seja como for, não é preciso abstrair tanto: ler intervindo é a minha maneira de trabalhar. Preciso que o livro seja um tipo de corpo. E não estou supondo.