9 de agosto de 2022

As coisas de que não me lembro, sou

por Darlan Santos

 

Iluminadas por um sol invisível, nebulosas aparecem e parecem preparar uma constelação desconhecida. Algumas pertencem ao imaginário, muitas à lembrança de um passado que ressurge por lampejos, ou que devo pacientemente reencontrar: os momentos mais profundos de minha vida não vivem em mim, obsedam-me e escapam-me um após o outro. Pouco importa. Diante do desconhecido, alguns de nossos sonhos não têm menos significação que nossas lembranças. 

(MALRAUX, 1967, p. 17)

No conto Funes, o memorioso, Jorge Luis Borges nos apresenta Irineu Funes, que, aos 19 anos, após sofrer um acidente, adquire a capacidade de lembrar-se de tudo: 

Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois, constatou que estava aleijado. O fato apenas lhe interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora sua percepção e sua memória eram infalíveis. (BORGES, 1999, p. 55)

Na contramão do personagem borgeano, o escritor mineiro Jacques Fux explora, em sua mais recente incursão literária, as deslembranças. As coisas de que não me lembro, sou, lançado pela editora Aletria, foi concebido originalmente como um artigo, para a revista da Academia Brasileira de Letras, em 2014. Em 2022, ao transpor o texto para o formato de livro, Fux contou com a preciosa colaboração da ilustradora Raquel Matsushita, cujos desenhos, inspirados no movimento surrealista, acompanham, página a página, as (des)memórias do autor.

AS COISAS DE QUE NÃO ME LEMBRO, SOU - Aletria Editora

A obra, de 56 páginas, parece ter sido elaborada para propiciar a leitura em um só fôlego. Acessando um repertório recorrente, que inclui traços autobiográficos, reflexões sobre a cultura judaica e o universo literário, Fux constrói seu texto de modo transbordante, em uma espécie de fluxo de consciência, no qual jorram esquecimentos, imprecisões e lapsos. Para um autor acostumado a debruçar-se sobre as memórias individuais e coletivas, não deixa de ser inusitado que, desta vez, seu ponto de partida seja a incapacidade de lembrar: “Eu não lembro do dia em que nasci. Nem do dia em que fui concebido. Não me lembro de ter crescido, e nem de ter habitado aquele lugar quentinho e confortável durante nove meses” (FUX, 2022, p. 6).

O autor/personagem habita na quase memória, no entre-lugar da realidade/ficção, no espaço pendular, que oscila da tradição familiar judaica à assimilação de outras vivências. Nesse obnubilamento, emergem, além das reflexões pessoais, as elucubrações sobre a Shoah – essa, sim, uma óbvia e justificável deslembrança, já que Fux não vivenciou o genocídio ocorrido na 2ª Guerra Mundial. Paradoxalmente (ou, nem tanto), é uma das “ausências de memória” mais referenciadas pelo escritor/persona literária, no ímpeto de revolver dores que não são apenas suas, mas de povos inteiros. Nesse sentido, a temática frequente e o mote da anamnese de si suscitam uma menção a outro escritor, cujas palavras podem coadunar com o livro de Fux:

Quando é abordada com perguntas, a recordação assemelha-se a uma cebola, que precisa ser despelada a fim de que seja exposto o que então pode ser lido letra por letra: e ela raramente é explícita, muitas vezes enigmatizada em escrita especular ou de qualquer outra maneira. Sob a primeira pele, que ainda estala secamente, encontra-se a próxima que, mal é tirada, expõe uma terceira, úmida, sob a qual aguardam e sussurram a quarta, e a quinta. E cada uma das outras exala o suor de palavras evitadas por demais tempo, também alguns sinais floreados, como se um merceeiro de segredos já desde jovem, quando a cebola ainda brotava, quisesse se disfarçar (GRASS, 2007, p. 10)

As considerações supracitadas são de Günter Grass, ganhador do Nobel de Literatura, em 1999, e fazem parte de seu livro de memórias, Nas peles da cebola, no qual o alemão revisita um passado controverso, admitindo sua participação, ainda na adolescência, no Terceiro Reich de Hitler. Ao expor essa camada de seu passado, Grass foi duramente criticado. Isso porque, nao obstante a sua postura política pacifista, mantivera oculto, por décadas, o seu envolvimento com o nazismo. O que poderia ter suscitado a impossibilidade de recordar? E o que teria deflagrado a (des)lembrança, aos 79 anos de vida?  

Em meio a indagações (e guardados os devidos contextos e vieses de Grass e Fux), uma constatação: mesmo recalcadas, negligenciadas ou disfarçadas, todas as memórias, até mesmo as mais dolorosas e ignóbeis, fazem parte do homem, do literato. “Inútil dizer que não esqueço nada que não me lembro”, escreveu Jacques Fux (2022, p. 47). Poderia, também, ter sido escrito por Günter Grass. Afinal, segundo Seligmann-Silva: 

A metáfora da cebola serve para indicar que a memória é composta de camadas e que choramos ao penetrar naquelas mais profundas. Ele [Grass] usa também abundantemente a metáfora do âmbar para tratar de seu passado como que fossilizado, encapsulado, que ele observa. Sua obra literária revela-se, deste modo, como uma espécie de grande figura de linguagem, como uma forma de dizer o que ele não queria ou conseguia confessar diretamente. (SELIGMANN-SILVA, 2007, n.p)

De modo análogo, em uma dessas circunstâncias que aproximam escritores e compõem a essência da Literatura, a despeito de divergências culturais ou ideológicas, Fux, em As coisas de que não me lembro, sou, também deixa pistas sobre o motivo de tantas deslembranças enumeradas (e revisitadas). Talvez, assim como em Grass, sejam camadas mais profundas, providencialmente sedimentadas, como estratégias de sobrevivência. Artimanhas da mente, que se desvelam na literatura:

Não me lembro das coisas que esqueci para poder viver. Não me lembro dos amores que extingui por medo de ressurgirem. Não lembro o motivo da invenção do meu ódio. Da minha raiva pelo mundo judeu e pelo mundo não judeu. Não me lembro de idealizar a beleza e a tristeza da Shoah. (FUX, 2022, p. 36)

Retornando a Borges, nossa referência original, cabe desfazer uma errônea impressão que pode acometer o leitor. Como o escritor argentino esclarece ao longo de seu conto, a habilidade prodigiosa de Funes – da faculdade plena e absoluta da memória – não é celebrada como uma dádiva, mostrando-se verdadeiramente nefasta: 

Funes discernia continuamente os tranquilos avanços da corrupção, das cáries, da fadiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato. Babilônia, Londres e Nova York sufocavam com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Irineu, em seu pobre arrabalde sul-americano. Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas no catre, na sombra, imaginava cada fenda e cada moldura das casas certas que o rodeavam. (Repito que a menos importante de suas lembranças era mais minuciosa e mais viva que nossa percepção de um prazer físico ou de um tormento físico.) (BORGES, 1999, p. 57)

Como explicita Ricouer (2007), a ideia de nada esquecer aproxima-se da loucura, podendo ser torturante. De modo antagônico, os esquecimentos de Fux, ao contrário do devastador efeito que a memória plena causara em Funes, são remanejados para um locus de edificação do eu, anunciado pelo subtítulo que descortina a parte final do livro – Tudo o que me tornei em função de não me lembrar:

Não me lembro de ter aprendido a não tentar, mesmo tendo sido recusado muitas vezes. Não me lembro de ter deixado de amar, mesmo após várias desilusões. Não me lembro de ter deixado de escrever, mesmo não acreditando que escrevia algo importante. Também não entendo o motivo de continuar escrevendo e almejando um amor. (FUX, 2022, p. 43)

Por fim, As coisas de que não me lembro, sou, surpreendentemente, revela-se coerente com a trajetória literária de Jacques Fux, já que as (des)lembranças foram elementos determinantes de seus escritos autobiográficos em Antiterapias (2012), de suas indiscrições amorosas em Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor (2015) e dos devaneios expostos nessas e em outras obras do autor, como Meshugá (2016) e Um labirinto labiríntico (2020). Conforme expressa Izquierdo (2010, p. 195): “[...] em boa parte esquecemos para podermos pensar, e esquecemos para não ficarmos loucos. Esquecemos para podermos conviver e sobreviver”. 

Mas como abrandar uma vida de esquecimentos, frente à pulsão humana de evocar o que nos é caro? O próprio Fux, o imemorioso, expõe sua estratégia e nos aponta um provável caminho: “preencho meus esquecimentos com literatura. Com ficção” (FUX, 2012, p. 51). Olvidar-se, enfim, pode ser bastante fecundo.

 

Referências

BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução: Carlos Nejar. 5. ed. São Paulo: Globo, 1989.
FUX, Jacques. Antiterapias. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
GRASS, Günter. Nas peles da cebola. Tradução: Marcelo Backes. Rio de Janeiro: Record, 2007.
IZQUIERDO, Ivan. A arte de esquecer: cérebro e memória. Rio de Janeiro: Vieire & Lent, 2010.
MALRAUX, André. Antimémoires. Tradução livre: Edson Rosa da Silva. Paris: Gallimard, 1967.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François. Campinas: Unicamp, 2007.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Realidade esquenta obra de Grass. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 out. 2007. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1310200708.htm