Audição, o aclamado romance de Ryu Murakami
Talvez alguns de vocês ainda não conheçam Ryū Murakami. O escritor, cineasta e ensaísta japonês acumula diversos prêmios literários, dentre eles o prestigiado Prêmio Akutagawa, que ganhou aos 24 anos por ocasião de seu primeiro romance Azul quase transparente (publicado por aqui em 1986, pela Brasiliense). Em seus romances costuma olhar para um Japão menos tradicional e conservador, optando por um outro obscuro e decadente, revelando facetas de bairros e espaços marcados pela pornografia, prostituição, drogas, mortes, delitos e psicopatia.
Ryū, ao contrário de Haruki, não opta pelo onírico ou melancólico. Sua escrita é mais direta, objetiva, carregada de tensão e detalhes, marcada por uma cadência adequada ao suspense que permeia as escolhas de personagens comuns, blasés, ordinários, caso do documentarista Aoyama, protagonista de Audição.
Aoyama, após sete anos viúvo, após sugestão de seu filho adolescente, resolve encontrar um novo amor. Com a ajuda de Yoshikawa, seu melhor amigo, executam um plano inusitado: realizar testes para um filme que pode nunca virá a existir, com o intuito de encontrar uma nova esposa para Aoyama. Entre as candidatas, está Assami Yamassaki, uma ex-bailarina, vinte anos mais jovem, que despertará em Aoyama um sentimento obstinado e cego, alimentado por sua beleza, pela mesma opinião sobre luto e sofrimento.
Assami Yamassaki parece corresponder as investidas tímidas de Aoyama, que a idealiza entre a imagem de sua antiga esposa e a possibilidade de ver refeita o seu ideal de família e felicidade. Esse é um primeiro elemento trazido nessas relação, a idealização do amor e da felicidade. O luto e a dor que Aoyama arrastou por anos, dá a esse fascínio que sente pela garota ares de sacralidade, uma idealização, e desperta, como em toda relação com o sagrado, um sentimento de culpa e não merecimento, que tornam o terreno ainda mais propício para o jogo de sedução e engano.
Um segundo aspecto, é que, apesar de todas as evidências e alertas, Aoyama vai mergulhando ainda mais fundo em sua paixão. Sua obstinação é surda aos alertas do melhor amigo, do filho adolescente e de uma experiente gueixa que o conhece a décadas. Uma sombra cobre aquela mulher. Não é possível encontrar quaisquer informações a seu respeito, sobre sua família e moradia. As poucas informações que chegam são sempre atemorizantes, e ainda assim ele segue ignorando.
A construção desses personagens é fascinante. O mergulho feito na solidão e nas fragilidade de Aoyama, um homem de 42 anos de idade, com essa inadequação para começar um novo relacionamento, mergulhar num novo amor, mas um tanto velho para esperar que as coisas aconteçam. Essa urgência que vem com esse deslocamento entre o "ainda posso" e o "já não são tão moço" é alentador e tão assustadoramente real. Assami Yamassaki é um misto de fragilidade, perigo e loucura. Uma psicopata que usa traumas antigos como mecanismo para seduzir, disfarçando essa vulnerabilidade comum a vítima, para manipular e executar um plano violento e cruel. O romance aproveita-se com habilidade dessas fragilidade; de um lado, uma fragilidade real e inconfessa, e, de outro, uma fragilidade simulada e manipuladora.
Perigo e prazer andam de mãos dadas. Em alguma medida, Aoyama presente o perigo, mas, talvez, por não se sentir digno encontra nessa tensão um modo de se sentir vivo, desejado, amado. Os instintos devoram a racionalidade, fazendo da entrega o verdadeiro propósito que os move.
Ryū Murakami soa ainda mais assustador que em Miso Soup (lançado por aqui pela Cia. das Letras), que marca o meu primeiro contado com o autor. Consegue aprofundar ainda mais a tensão de suas personagens, produzindo mergulhos nos hábitos, na vida e obsessões de Aoyama. A fragilidade assenta-se na sua necessidade de amar e ser amado, o que o leva a essa necessidade de substituir seu antigo amor por alguém que de, algum modo, possa continuar o seu ideal de felicidade.
A própria juventude de Assami Yamassaki tem pouco ou nada a ver com um homem de meia-idade querendo se exibir com uma moça jovem e bonita. Diz mais sobre a idealização e a imagem que tem de seus momentos mais felizes ao lado da esposa morta. E acredito que, em certa medida, a esse sentimento conflituoso em um homem de 42 anos, de não se sentir velho, mas perceber que já não é tão jovem, uma vez que já construiu uma carreira, tem um filho com dezesseis anos, certa inaptidão social para novos envolvimentos e a marca de um amor carregado ao longo da maior parte de sua vida. Não se é alguém desprovido de bagagem, mas também não é alguém que não posso seguir adiante. E isso é o de mais perturbador nesse psycothriller.
Até aqui, Ryū Murakami não me decepcionou. Vale a pena conferir.