Hundo, de Maria Isabel Bordini
por Camila Marchioro*
Ler um livro é fazer um pacto e criar expectativas que podem ou não se concretizar ao longo leitura. Vivenciamos o que o autor escreveu ao mesmo tempo em que criamos enredos/futuros prováveis para as personagens que vão aparecendo pelas páginas. Nesse processo de descoberta intensa, Hundo, de Maria Isabel Bordini, é um desafio. Publicado em 2021 pela Kotter Editorial, o livro nos conta a história da personagem principal, a Outra, sua relação com Nina e um encontro com o cão Hundo.
A leveza da capa e a presença do cão remetem a leituras como Vidas Secas. Pelo relato em primeira pessoa, conhecemos a Outra e a falta de espaço para Hundo, o cachorro que ela insiste em levar para seu pequeno apartamento. Esse encontro criou em mim expectativas de docilidade e fragilidade, todavia, rapidamente, o que eu pensava ser belo e dócil se transformou em forte e trágico. A narrativa dos dias que se passam sem que a Outra consiga se ajustar deixa em nós um gosto de impotência.
Fragmentos desconfortáveis de vida são apresentados por meio de diferentes focos narrativos que se alternam. No meu caso, esperançosamente juntei cada pedaço a fim de criar um lugar seguro pelo qual pudesse conhecer a totalidade dos fatos. Entretanto, Hundo está próximo demais da vida e não nos deixa relaxar. Pelo contrário, quando finalmente as partes formaram um todo, o que apareceu foi um retrato contundente de situações de impotência e ultraje. A mão invisível de uma sociedade inteira é o que move o enredo.
Há uma riqueza precisa nas descrições dos espaços, movimentos e ações. A relação entre humano e cachorro foge da experiência comum e revela, nos rastros de pequenos crimes diários, que os limites entre gente e bicho são mais tênues do que podemos supor. Aos poucos, as situações de desajuste vão tomando dimensões inesperadas e são envolvidas por um ar de mistério: queremos e não queremos saber a verdade, pois, a certa altura, já está claro que será feroz.
Quando Nina nos é apresentada por um novo narrador, temos a esperança de ajuste para o descompasso inicial, mas os tempos são de guerra. O passado se sobrepõe ao presente, às vezes confundem-se: o caos passa a ser a norma. Qualquer coisa que seja certa demais parece deslocada, por isso, desconfiamos de Ricardo e Carol, personagens estranhamente harmônicos.
Mais personagens se juntam a esse cenário de guerra velada, um vizinho, um irmão, um veterinário... e, como na vida, esperamos por coisas que não acontecem. De algum modo, levanta-se o desejo de que o encontro com cão Hundo seja uma solução, mas somos constantemente desiludidos. Queremos que as personagens sejam mais fortes que o mundo ao seu redor, maiores que sua própria condição e esse desejo que se arraiga nos acompanha até o final da narrativa e depois.
Plantando em nós uma esperança que não pode florescer, Bordini desvela o íntimo de uma estrutura social podre. Costureiras velhas e advogados são os símbolos da ordenação desse mundo: remendam calças e leis; enquanto isso, nas franjas, impera a maldade dos homens. Hundo, forte e atualíssimo, é um convite ao estranhamento, pois mostra como nós podemos ser agentes da catástrofe de alguém por reproduzirmos obedientemente a padrões sociais. No livro de Bordini, as tragédias cotidianas ganham a dimensão que realmente têm e olhá-las dessa forma é um desafio imenso e necessário.
FICHA TÉCNICA
Livro: Hundo
Autor: Maria Isabel Bordini
Editora: Kotter Editorial
Páginas: 200
*Camila Marchioro é curitibana, doutora em letras pela UFPR, professora de literatura e poeta. Gosta de conversar com as gralhas azuis.