Ensinar literatura
No olho desse furacão chamado Brasil, entre 2014 e 2018, pulsava (aqui dentro) um professor de literatura. Lecionar no Ensino Médio foi para mim uma aventura muitíssimo particular. A cada cinquenta minutos, os meus pés me sustentavam diante de mais de trinta narizes e sessenta e tantos olhos cujas retinas atiravam sobre mim um desejo oco de bocas abertas.
Pese a tudo o que supõe ser professor ou professora de literatura na terra brasilis, busquei manter uma espécie de pacto silencioso com os meus alunos e alunas (no fundo, comigo mesmo): cada aula minha consistia não apenas em elevar a juventude acima dos seus próprios bocejos, mas, antes, passava por lembrar que a literatura está intrinsecamente atrelada à vida – não apenas à vida das pessoas “cultas” e interessantes, mas também à vida de cada estudante. De fato, não há outra forma de ensinar literatura que não seja através daquele fio tênue e intenso que a conecta à vida.
Munido desse acordo silencioso, enfrentei diversos Golias: o pouco interesse pela leitura literária em contexto escolar, as redes sociais, a ditadura da imagem, outras artes não menos interessantes, embora incapazes de substituir a literatura. Porém, as minhas aulas não tratavam de Estilos de Época, gêneros literários ou elaborações teóricas, mas sim da realidade dos estudantes: o amor na adolescência, a separação dos pais e mães, o muito ou pouco dinheiro, as desigualdades, o vazio existencial, o exibicionismo, o narcisismo da era digital, a necessidade de agradar para ter aceitação... estes eram alguns dos temas que guiavam as minhas aulas, até que, num determinado momento, um debate fervoroso e despretensioso era prontamente conduzido ao saber literário curricular. Tratava-se de espreitar o momento certo, esperar o peixe e puxar o anzol rapidamente. Quando essa ponte era feita, todos os olhos – todos! – fulguravam o mesmo brilho de espanto, nenhum nariz sobrevoava bocejos e, com a emoção, os meus pés sentiam qualquer coisa que já não era o chão.
Certo dia, o tema da aula foi a morte, parte fundante da vida. Proposta minha. O que eu não pude incluir no plano de aula é que uma aluna houvesse perdido a mãe há poucos dias, por suicídio. Diante desse cenário, a aula de Simbolismo ganhou ainda mais carne: para tratar da morte na vida, com a doçura que o debate exige, foi-me útil a voz de Henriqueta Lisboa. No meio de uma aula atravessada por silêncios trêmulos, a poeta mineira nos ensinou que só a vida, incluindo o seu final, é a substância que dinamiza a arte literária. Esta relação é tão grande, incontornável e indizível que termino esta crônica com o poema que lemos naquela aula tão vital:
Vem, doce morte
Vem, doce morte. Quando queiras.
Ao crepúsculo, no instante em que as nuvens
desfilam pálidos casulos
e o suspiro das árvores — secreto —
não é senão prenúncio
de um delicado acontecimento.
Quanto queiras. Ao meio-dia, súbito
espetáculo deslumbrante e inédito
de rubros panoramas abertos
ao sol, ao mar, aos montes, às planícies
com celeiros refertos e intocados.
Quando queiras. Presentes as estrelas
ou já esquivas, na madrugada
com pássaros despertos, à hora
em que os campos recolhem as sementes
e os cristais endurecem de frio.
Tenho o corpo tão leve (quando queiras)
que a teu primeiro sopro cederei distraída
como um pensamento cortado
pela visão da lua
em que acaso — mais alto — refloresça.
Poesia geral, 1985.