Marcas de Nascença, de Arnon Grunberg
O escritor holandês, Arnon Grunberg, vem sendo publicado por aqui desde os começo dos 2000 (em 2003, a Globo publicou seu primeiro romance Amsterdam Blues, e; em 2005, Dor Fantasma), ganhou repercussão com o lançamento de Tirza (pela Rádio Londres, em 2016, que também publicou no mesmo ano o O homem sem doença). Jornalista, apresentador, radicado em Nova York, além de romances escreve ensaios, roteiros, peças e textos para jornais e revistas (como os que publicou por aqui na Piauí). Seus livros já foram traduzidos para diversos idiomas, incluindo Foi traduzido para o inglês, alemão, dinamarquês, italiano, francês, espanhol, sueco, japonês. Marcas de Nascença é seu 16º romance, e seu lançamento mais recente por aqui (pela Rádio Londres, em 2019).
O romance nos apresenta a Kadoke, um psiquiatra, e nada além disso. Não é branco, no máximo, disfarçado de branco. Não é judeu, apenas de origem judaica (os pais é que são sobreviventes dos campos de concentração). Não se permite ser nada além de uma função, o que a profissão o define. Ele trabalha num espécie de SAMU psiquiátrico, e não deve se envolver emocionalmente com os pacientes com tendências suicidas atendidos pelo serviço de emergência psiquiátrico. Porém, não vê mal algum em assediar as médicas residentes. E extravasa suas emoções conflituosas com cigarros, emulando alguma sensação de controle. Após assediar sexualmente a cuidadora de sua mãe, um imigrante ilegal nepalesa, vê-se obrigado à casa materna para cuidar da mãe idosa.
Na relação, o amor é expresso em xingamentos e no esforço contínuo para não morrer. A mãe diz que o filho é um fraco, sempre foi, e precisa que ela viva para não desandar. Essa relação de dependência confunde os papéis de quem cuida de quem. As fragilidades físicas e emocionais encontram suas respectivas muletas e tudo se mantém disfarçadamente numa aparência de ordem e normalidade.
O magnetismo de suas personagens e habilidade de confundir e subverter as expectativas postas no romance são características pontuais do autor. Mas em Marcas de Nascença isso aparece de forma ainda mais apurada. Quando se acredita ser uma história sobre algo se descobre se tratar de algo completamente diverso. Grunberg faz parecer fácil a construção de dramas intensos e de personagens densos carregados de tensões, conflitos, defeitos e qualidades.
Não canso de elogiar os diálogos. Todos bem elaborados, ágeis, capazes de revelar o bom e o ruim de suas personagens, evidenciar características, ideias, fragilidades, sem recurso ao ordinário, tampouco sem apelar ao chocante e/ou extraordinário. Há uma cadência que não emula, mas reproduz de forma fidedigna a vida cotidiana. E os detalhes, por vezes pequenos e imperceptíveis, são utilizados para dar dimensão e profundidade a conflitos existenciais, sofrimento mental e carências afetivas. Qualquer aceno já se mostra como uma forma gentil ou agressiva de amor.
Marcas de Nascença surpreende pela capacidade de subverter expectativas, mudar de direção, e assombra pelo domínio da técnica (que desaparece na forma), tanto no que diz respeito ao desenvolvimento do enredo, construção de personagens e, sobretudo, na composição dos diálogos.
Grunberg é mesmo um daqueles escritores para se ler com atenção redobrada.