A hora do carcará, de Aliedson Lima
Não é incomum a associação entre miséria e o sertão nordestino. Os esteriótipos do sertanejo estão por toda a parte: nas telenovelas, romances, nas falas xenófobas dos sudestinos e sulistas e, em geral, no imaginário do brasileiro. Mesmo os nordestinos que habitam no litoral parece acreditar que o sertão nordestino é sinônimo de pessoas esquálidas, desconfiadas e famélicas. As mulheres estão sempre com um pano amarado na cabeça e uma cara de sofrimento; as crianças sempre de shorts, com barrigas povoadas por vermes e costelas salientes; os homens são calados, brutos, de peixeira nos quartos para resolver tudo no tapa e no derramar de sangue. A rês está sempre sob o olhar atento dos urubus e todos vestem gibão e chapéu de couro.
Esse sertão retrata nos romances de 1930 ainda apresenta resquicíos, mas é preciso contrapor a um outro sertão a quase um século distante. É um sertão com escolas, internet, tecnologias, agronegócio, projetos de irrigação, comunidades tradicionais e assentamentos. Um sertão com universidades públicas, institutos federais, escolas de referência, hospitais, asfalto, faculdades privadas, agências bancárias, lanchas etc. Um sertão em que o carro de boi divide espaço com caminhonetes e SUVs. Um sertão em que o vaqueiro divide lugar com o agrônomo e o zootecnista, em que o jumento perde espaço para as motos.
Aliedson Lima é um autor desses sertões. Morador da zona rural de Canindé do São Francisco, no sertão sergipano, cidade pequena cortada pelo Velho Chico e pela exuberância de seu cânion e sítios arqueológicos, escreve desse lugar em que o velho e o moderno colidem. Em A hora do Carcará esse constraste entre o real e o imaginário é posto sob a ótica da espetacularização da pobreza feitas pelos programas sudestinos de TV.
Candinha, uma agricultora sertaneja, é escolhida para protagonizar um quadro no programa de Reinaldo Garraço. Toda a prepotência e superioridade do estrangeiro chegando ao sertão marcam a sua chegada a Canindé. A esteriotipização da muher sertaneja, vestindo-a com gibão, escolhendo a locação mais miserável, focando nas carcaças, na morte da criação, na narrativa da fome, o programa vai revelando não a história que existe, mas a que a audiência deseja ver.
Candinha, Dalila, Lenira, Lucáccio, João Ferrão, Seu Zé não cabem nesse lugar povoado pelo imaginário. Não se inserem nesse povo refém da miséria e do sofrimento como marca e não como circunstância que abate ao sertanejo, mas também aos do litoral, os do Nordeste e Sudeste.
Aliedson vai construindo a sua narrativa utilizando os elementos etnocêntricos que tornam esses programas apelativos. Prêmios em dinheiro, abstecimento de água e supermercado por um ano, a viagem de avião, a ida ao mar (como se a beleza do rio São Francisco e a exuberância da região fossem menor) são alguns desses recursos utilizados a exaustão em programas dominicais com apresentadores que ora mostram a distância que tem dessas pessoas, ora interpretam um tipo pai dos pobres, humilde, popular.
Suas personagens são bem construídas. Aliedson utiliza bem o seu próprio universo para contar uma narrativa consistente. A leitura flui bem e mantém certa cadência por todo o romance. Se tivesse de apontar dois pequenos problemas seriam: a) o desfecho um tanto apressado, e; b) um excesso de referências, que pessoalmente me incomodam e parecem estar ali não para revelar algo das personagens, mas para demarcar que o autor as têm. Frise-se que modo algum, são prejudiciais ao romance, mas são plenamente compatíveis com um autor explorando sua escrita num primeiro romance (ou escolha do autor).
A hora do carcará revela um autor promissor e traz um sotaque diverso, um registro do lado de cá, seja o outro lado da tela, seja a de um sertão cem anos mais velho que aquele das páginas de Raquel de Queiroz e Graciliano Ramos. Longa vida a Aliedson Lima!
*O autor acaba de lançar a edição física do romance. Para adquirir é só entrar em contato.