Fantasma, de Nilton Resende
Fantasma é o primeiro romance do alagoano Nilton Resende. Apesar de estreante no romance, Nilton está longe de ser um neófito na literatura. O professor da Universidade Estadual de Alagoas, e expert na obra de Lygia Fagundes Telles, onde coordena os Grupos de Pesquisa Ensino de Literatura (com ênfase no Ensino Médio) e Estudos da Narrativa (com ênfase em Narrativas de Ficção). Além disso, integra a Cia. Ganymedes de teatro, para a qual adaptou a novela Mário e o Mágico, de Thomas Mann, para o espetáculo O Mágico, que codirigiu e protagonizou. Publicou os livros O Orvalho e os Dias (poesia), Diabolô (contos) e A construção de Lygia Fagundes Telles: edição crítica de Antes do Baile Verde. Também atua no cinema como ator, roteirista, preparador e diretor de elenco. Seu curta metragem A Barca (2019), baseado no conto “Natal na barca”, de Lygia Fagundes Telles, é seu primeiro filme como roteirista e diretor. De ver-se que está longe de ser alguém tateando na escrita ou pouco consciente de seu processo criativo.
Toda essa bagagem é perceptível em Fantasma, que, apesar de curto, não proporciona uma jornada rápida e fácil. A linguagem envolta numa névoa de melancolia e mistério é pantanosa e causa desconfortos e desafios ao leitor. Há poesia em cada frase e uma fragmentação contínua, pequenos pedaços, pequenos cacos escondidos sobre camadas e camadas de terra preta (tomando de empréstimo o termo da Arqueologia). Ali nesses fragmentos de vidas encontra-se a verdade ou o passado ou o presente desse ser abstrato e sobrenatural a que somos gradativamente apresentados.
Nos lugares, após frequentados por pessoas diversas, há sempre um pouco delas: odores, raspas de pele, pelos, salivas, lembranças sonoras, humores vários. Grudam-se às paredes, tecidos, pisos. Por vezes, varam-nos.
Os lugares todos são palimpsestos de visitas.
A estagnação do fantasma é desconfortável. Estático num quarto de hotel, sente os odores, os gemidos, os vapores dos corpos que se entregam ao sexo, ao desamor, às futilidades cotidianas, ao ritmo ordinário das famílias, aos significados desprovidos de relevância da existência de quem chega e parte, de quem nunca permanece. A vida corre macia sem se dar conta da passagem dos dias ou dos percalços da estrada. Apenas o fantasma segue ali estagnado, vazio, desprovido de sentido e de significados, de corpo que lhe preserve o tato, a fala ou o sentimento.
Mesmo os nomes das coisas e pessoas parecem dizer pouco ou nada acerca delas. As palavras arvoram-se de um poder inestimável, místico e criador. Parecem trazer à existência novos sentidos a velhas existências. O criado mudo vira pequena cômoda. Perde-se o peso que a primeira tem? Esconde-se o passado cravado nas coisas, nos móveis, nos espaços? O fantasmo perdeu o nome, perdeu-se do nome, e sem o nome perdeu-se de quem é, foi ou será. As palavras dançam com leveza e elegância em sua boca, em suas observações. A vida já não pulsa no corpo abandonado, mas o atravessa como o sopro divino dando luz ao barro.
Paulo está sentado num velocípede, as mãos no volante, um dos pés levantados, apoiando na roda dianteira. Atrás, espalhados pelo chão do quintal, diversos brinquedos, bonecos de pelúcia, um cavalo de pau, um cachorrinho com uma orelha rasgada na base. Ao fundo, um pequeno arbusto grudado à parede. Minha mãe vai adorar rever o Paulo, vai ficar emocionada, disse a mulher, e logo depois levou uma das mãos ao rosto, ao ver a última imagem, passando os dedos sobre a fotografia, ampliando-a, reduzindo-a, olhando-a em seus detalhes, a ponta de um dos dedos deslizando sobre os rostos, as roupas: Quanto tempo, quanto tempo!
É fácil se perder ao longo da leitura. Os muitos e fulgazes personagens, que vem e vão ou vem e voltam, deslocam o movimento para o que parece menos central no romance, e isso causa essa estranheza. Eis um ponto alto da narrativa. Nilton consegue criar um palimpsesto, induz ao esforço arqueológico de escavar, identificar, separar, tratar e interpretar para se chegar a quem foi, é ou será o fantasma. De algum modo, todos são aqueles que se movem, atravessam paredes, experimentam desejos, medos e sensações diversas. No quarto de hotel, além da mobília, apenas o fantasma permanece no mesmo lugar. São os vivos que atravessam as paredes, que assombram e se deixam assombrar, que se cruzam e se atravessam, tomando um o lugar do outro, nesse mix de inseguranças e certezas, cuidados e desleixos, paixões e ódios, afagos e agressões, beijos, fodas e abraços.
O fantasma está sempre ali, em pé, fundido aos móveis, ao papel de parede, perdido em si, sem se dar conta de que o tempo passa enquanto observa estagnado a outras vidas. E que outra metáfora poderia definir tão bem esses nossos dias, em que perdidos atrás de uma tela, num canto da casa, por trás das palavras, do pecado, do dedo em riste, ficamos parados, impotentes, mortificando o corpo, os desejos, os anseios? Afinal, não estamos aqui esperando e esperando e esperando a barca dos dias passar?