Inventário de Predadores Domésticos, de Verena Cavalcante
Há alguns anos quando me deparei com a prosa de Verena Cavalcante fui tomado por entusiasmo e encanto. Como feiticeira, encanta com seus contos repletos de personagens ordinários, de reveses, lástimas e medos. Como artista, pinta cenários aterrozantes, que flutuam entre o real e o insólito. Não, não há fantasmas saltando após o ranger de uma porta, nem garras afiadas cortando a carne dócil de um desavisado. Aqui o mal vem de dentro, do âmago, do coração humano e suas contradições. O medo desponta enquanto espelho, e nada aterroriza mais que a imagem que nos olha de volta.
O encanto inicial persiste diante de seu Inventário de Predadores Domésticos (Darkside, 2021). A fauna e flora catalogados por Verena passeiam pela infânica (v. a epígrafe, "A infência é o molde dos monstro"), pela condição e idiossincrasias da violência contra e do ser mulher e pela maldade humana. E o faz a partir de diferentes perspectivas, construindo em diversos contos narradores crianças e/ou mulheres que parecem perdidas entre o torpor de suas lástimas e a loucura emergente.
Mas de que fogem? O que aterroriza seus narradores e narradoras? Podem ser coisas mais físicas, como a menina que tem medo de ir a escola desde que um coleguinha desapareceu (Macaúba) ou um garoto que teme que os coleguinhas contem ao pai que ele fez troca-troca (Tijolo); ou das pressões externas e sociais, como velhice a abandono (Ralo), as pressões pela maternidade (O berro do bode) ou o abuso sexual infantil (Picada).
O modo como narra, as escolhas estéticas e narrativas, o modo de usar desde a linguagem, ora mais oral, ora pouco mais formal, faz do livro uma coleção de espécimes interessantes. Fascinam pelo tamanho reduzido, pelas cores, venenos e potencialidades.
Verena reúne e expõe a sua coleção de insetos, de seres esquisitos, perigosos, nojentos e, sobretudo, contratidoriamente fortes e frágeis, numa sequência impressionante de espécimes. Ela abraça o terror não como quem nele se deleita, mas como quem não o nega no entrelace com o real. O sobrenatural desponta não como oposição ao natural, mas enquanto uma de suas mais legítimas dimensões.
Ao longo do livro, é possível perceber uma série de referências, que vão desde Shirley Jackson, Leonora Carrington, Stephen King, The Cure a outras mais recentes como Mariana Enríquez e Samanta Schweblin. Aliás, ouso dizer que Verena ocupa merecidamente um lugar entre o séquito de autoras latinas do quilate das que acabei de citar e de María Fernanda Ampuero, Andrea Jeftanovic, Giovanna Rivero, Fernanda Trías, e de brasileiras como Irka Barrios, Paula Febbe, Andrea Berriell que tem trazido a lume as cores do horror, terror e medo que costumam negar ao real.
P. S.: Entrevistei a Verena Cavalcante num dos episódios do Lavadeiras do São Francisco. Vale a pena conferir.