Um Brasil (nada) distorcido – Por Bruno Ribeiro
O projeto literário de um escritor nasce a partir da primeira palavra que ele escolhe botar no papel. Segue com os temas escolhidos, que terminarão sendo a sua obsessão, a linguagem utilizada para organizar o seu caos, até a derradeira última página. Desde a primeira palavra do primeiro conto de “Os Santos do Chão Bravo” até a última, João Matias se mostra preocupado em manter este projeto vivo e coerente.
João é um escritor da técnica, fã de João Cabral de Melo Neto, o homem da faca afiada na poesia, das medidas exatas, da palavra justa. E assim como o poeta citado, João utiliza deste rigor nos seus contos. E se utiliza da poesia também. Nada passa do ponto, é tudo milimetricamente escrito, calculado. Um lirismo que pouco transborda. E acompanhar esta medida, que veio desde os seus tempos do Caixa Baixa, grupo literário que fizemos parte em 2012, até hoje é uma alegria.
Porém, o que me alegra mais é ver que “Os santos do chão bravo” trouxe algo novo neste projeto de João Matias, que envolve técnica impecável na forma e violência, critica social e um olhar aguçado para as nuances humanas, nos temas.
Aqui, permanece o autor rigoroso, mas que agora se permite experimentar com as suas habilidades literárias. Se permite transbordar em seu próprio eixo. Literatura é magia e técnica, e neste novo livro ele aceita a magia. Dedilha pelo fantástico, subverte com alguns preceitos do que seria um conto perfeito, estremece com alicerces, enfim, arrisca e nos apresenta novas facetas da sua caixa de ferramentas. Entende que é preciso abraçar as falhas e expandir o seu próprio projeto literário, brincar com ele, levá-lo a locais inimagináveis. E literatura é risco. É pegar a técnica e não reproduzi-la como um quadro de natureza morta. É transformá-la em uma natureza viva, pulsante, que ultrapassa a própria técnica.
E ele arrisca dentro de um gênero tão rígido que é o conto. Arrisca também em um dos temas no qual decide escrever: o faroeste, o policial. É possível ver traços dos filmes de Sergio Leone à prosa de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan. Tem cinema e literatura, tem os irmãos Coen, a prosa árida de Ana Paula Maia, Mariana Travacio, Marçal Aquino, o faroeste de ontem e o de hoje, mas, acima de tudo, tem o próprio autor e os seus fantasmas. Assim como esses artistas citados, João constrói um universo. Descreve com uma exatidão invejável cada móvel, personagem, espaço, local, temperatura, sem nunca cair no lugar comum. É literatura com cheiro e tato. Terminamos o livro com a sensação de conhecer cada beco deste local imaginário que ele criou, Cidade Grande, mas tão nosso.
Cada conto de “Os santos do chão bravo” são diferentes um do outro em termos técnicos, mas tematicamente funcionam como uma unidade, como um álbum musical, um romance, e isso é o ideal a meu ver: um livro de contos não precisa que todos os contos sejam impecáveis, perfeitos, mas precisa que todos funcionem como uma unidade, que tenham um conceito único.
E com uma prosa repleta de lirismo, porém enxuta, com frases sincopadas carregadas de sentido, João traça a sua odisseia entre esses nove contos apresentados: são os ossos coloniais de “Carcamanos”, as mulheres de “Maria das Dores” que buscam romper com o patriarcado, mas repetindo violências históricas, os canários, que permanecem morrendo até hoje, seja em Chão Bravo, seja em Cidade Grande; são os poetas reacionários que pensam que arte é mais pose do que labuta, os santos hipócritas que habitam tantas igrejas deste país e o samurai que bate de frente com as suas próprias origens em um casarão repleto de violências e abusos. No final das contas, o que menos se tem neste livro são santos. A ambiguidade ultrapassa cada página e a solução aparenta habitar no acerto de contas do conto “Carcamanos”, que parece nunca chegar de fato. Eternamente suspenso no espaço-tempo.
Cidade Grande poderia ser tantas outras cidades que conhecemos. Ela é marcada pela desigualdade, os traumas do colonialismo, o machismo, a violência arbitraria e o fascismo. Coincidência? Jamais. Não seria exagero falar que este local “ficcional” nada mais é do que uma metonímia do Brasil. Ela é um pedaço do que somos. Um alicerce da nossa formação. E “Os santos do chão bravo” estremece o leitor por entendermos que estamos lendo um livro sobre todos nós. Os nove contos operam como um vulto da realidade, das nossas origens, de quem somos. E, por isso, amedronta tanto nos vermos diante de tamanho espelho distorcido, mas que infelizmente nem é tão distorcido assim.