Pau-Brasil e Abaporu no prêt-à-porter
“O guarda-roupa modernista: o casal Tarsila e Oswald e a moda”
É possível ler as entrelinhas das aparências de muitas formas. No que os olhos veem, com o que se intui, na ficção ou nas imagens, como exemplos. Em “Guarda-Roupa modernista” de Carolina Casarin (Cia. das Letras), a investigação é histórica. Fotos, recortes de revistas, entrevistas e documentações da época. De narração tão elegante e precisa quanto os vestidos assinados por Poiret usados por Tarsila do Amaral, vemos como a aparência torna-se código para o mundo das artes no Brasil, onde a autora manda a real sobre como observar o movimento nos tempos de agora:
“Na rachadura do pé caloso do modernismo que ele deve ser examinado – na incompletude, na incongruência, na contradição” (CASARIN, 2022, pag. 25).
E é daí que entendemos: O guarda-roupa modernista brasileiro é burguês. O pensamento dos artistas preocupados em encontrar uma estética brasileira própria se vestiam com o melhor dos costureiros internacionais para ocupar os vernissages, os bailes, os jantares. Elegâncias registradas em poemas, festas, encontros artísticos, pinturas, reportagens nas revistas nacionais e estrangeiras.
O escritor da obra Pau-Brasil e a pintora de Abaporu entraram pela porta da frente de uma das principais casas de prêt-à-porter francesa para consumir boas roupas. É o encontro do dinheiro, vindo do café, com a elegância criativa de Paul Poiret. Se a “última moda em Paris”, é um sentimento que ainda perdura por aqui, imagine na década de vinte, século passado. Tarsila e Oswald perseguindo uma linguagem própria, desde que passasse pelo aval do circuito europeu. Quando a gente ouve a palavra prêt-à-porter*, parece uma nomenclatura filosófica, algo que nos transporta para um mundo de correções onde aquele pret alguma coisa, pode dar justificativa importante para seguir. Imagina então, o efeito que a palavra maison** devia fazer na cabeça desse povo naquela época. Para artistas ricos como Tarsila e Oswald, vestir uma roupa cara devia ser uma necessidade quase fisiológica.
“Olhares blasés, distantes, ou enfrentamento atrevido da câmera. Fisionomias simuladas e sorridentes. Pessoas que foram assimiladas pelas narrativas da história como intelectuais, poetas e artistas daquilo que chamamos modernismo brasileiro” (CASARIN,2022, p.73).
Nesse sistema que foram capazes de se inserirem e de uma certa maneira, comandar no Brasil, ficamos sabendo que Tarsila usava roupas finas e caras até mesmo no meio da fazenda e entre o convívio com os empregados.
Tarsila vestia um sentimento mundano. E Oswald, ao escrever o verso “Caipirinha vestida de Poiret”, reforçava a ideia de que mesmo vestida como as figuras da realeza internacional, por debaixo daquela roupa habitava um coração brejeiro tupiniquim que sabia quando devia ser a caipirinha ou quando devia ser a burguesinha. Esse jogo de mudanças de personagens, talvez fruto da desigualdade social que desde sempre tempera os paladares brasileiros, atravessaram o armário de Tarsila e Oswald. Tiveram o jogo de cintura para transitar em diversas realidades e ainda sim, serem vistos como eles mesmos.
No livro, podemos encontrar os significados que cobrem os corpos dos artistas, os rastros das roupas, em especial, os de Poiret vestidos por Tarsila. Não é uma obra sobre a moda dos tempos, mas em torno da materialização estética dos sete anos em que o casal esteve junto.
No capítulo, “madame” vemos os valores atualizados de quanto ela gastou numa simples encomenda. Em um mundo em que a desigualdade está cada vez mais conhecida e escancarada, ver o recibo de compra das roupas que Tarsila fez na maison francesa Poiret (mais de 100 mil reais, em valores corrigidos) é chocante. Vemos também como o sistema das maisons de luxo da moda lideradas por homens, na maioria empresários, pouco mudou até hoje. É possível adquirir o que chamam de estilo e agradabilidade assinando uma boa transferência bancária.
Podemos encontrar por todo o livro, trechos de poemas escritos por Oswald, Drummond, Cendars. Uma coisa que fica clara é que em se tratando de consumo no exterior, havia uma amizade no ar, algo que não acontecia para o casal em outras marcas de moda. Até porque, o conceito de marca era muito descolado do que é hoje. Na época, maison, era uma casa de estilo para madames. Hoje, qualquer marca de moda de alto luxo, tem que ser primeiramente, máquina de fazer dinheiro, ainda que pouca ou nenhuma elegância esteja encarnada em seus produtos.
O livro, que é tese de doutorado da professora Carolina Casarin, traz muitos relatos curiosos, como a tentativa de quase atentado sofrido pela Tarsila, salva pela própria elegância que ajudou com que rapazes se arrependessem de pensar em rasgar seus quadros. Há um capítulo inteiro dedicado ao vestido de casamento, assinado por Poiret, entre outras curiosidades.
Com a ascensão e queda do casal, ficaram as fotos registradas com alguns sorrisos sob as melhores roupas, trechos de cartas e este livro que unifica a maneira dos criadores do Pau Brasil e Abaporu, da cor da pele brasileira na pintura, do valor da estética que atravessa o mundo da moda, artes e literatura. Nesse encontro, é como se um erudito cartão postal flanasse em meio a um campo de trabalhadores que não sabiam ler. A mensagem do cartão é aberta cem anos depois.
Salma Soria é escritora de “Vestindo a roupa ouvindo a máquina” e “Muitas roupas aqui” (Penalux).
*palavra francesa que significa: pronto para vestir. Em inglês, é chamado de ready-to-wear. O significado é o mesmo, porém, são termos ainda utilizados para falar da criação comercial de moda.
** casa, em francês. No contexto da moda, é indicativo de alto luxo. Casas que pensam e executam uma moda própria. Maison Chanel, por exemplo.