Sede, de Amélie Nothomb
Uma das personagens mais fascinantes, intrigantes e controversas da história ocidental é, sem sombra de dúvidas, Jesus Cristo. Capaz de despertar semtimentos díspares, que vão da devoção pura e simples à repulsa e/ou rejeição, e suscitar paixões e sentimentos diversos.
Também não há apenas um único Jesus. Há o Jesus histórico, o bíblico, o das igrejas cristãs, o do Kadercismo, o que ama o desvalido e está encarnado no amor ao próximo, há esse outro promíscuo e adorado na boca de políticos e que veio para matar, roubar e destruir. Em torno deles, o potencial de unir ou dividir. Há, ainda, o Jesus apresentado em Sede, romance da belga Amélie Nothomb, lançado pelo selo Tusquets e com tradução de Gisela Bergonzoni.
Sinopse
Após ser julgado diante Pilatos, Jesus aguarda em sua cela pela crucificação. É essa noite, que segundo os evangelhos nunca existiu, em que o romance se desenvolve. Jesus, ante a finitude da vida, reflete sobre a encarnação, sobre ser e tornar-se humano, nas limitações que o Pai teria por nunca ter vivido a experiência humana, com suas fragilidades, medos e necessidades.
"Sempre soube que me condenariam à morte. A vantagem dessa certeza é que posso voltar minha atenção àquilo que merece: os detalhes."
Com tamanha objetividade é que começa o seu relato. E retrocedendo aos acontecimentos, com consciência do porvir, para considerar e refletir ante a morte iminente os seus dias entre os homens.
Sobre a autora
Amélie Nothomb, nascida na Bélgica em 09 de julho de 1966, é uma das maiores figuras da cena literária da Europa, best-seller em diversos países. Autora prolífica, publicou um livro por ano desde seu primeiro romance, Hygiène de l’Assassin (1992). Seu enorme sucesso valeu-lhe a nomeação de Comandante da Ordem da Coroa, e o rei Filipe da Bélgica ofereceu-lhe a concessão do título pessoal de baronesa.
Em 2015, foi eleita membro da Real Academia de Língua e Literatura Francesa da Bélgica. Em 2021, recebeu o prestigioso Prêmio Renaudot com seu livro Premier Sang*.
No Brasil, além de Sede, foi publicado o romance Medo e Submissão (Record, 2001).
O que achei
Eis um livro comprado no impulso (ainda na pré-venda). Desconhecia a autora completamente, mas a sinopse, dada a minha relação com a religião cristã, acabou por despertar o interesse. Posso dizer, apesar do risco, que minha expectativa não foi frustrada.
Nothomb constrói uma personagem complexa, referenciada nos evangelhos, nas controvérsias e em sua própria imaginação. Ela consegue dar ao Cristo uma face humana, acertando na dualidade de ser homem e deus. O modo como equilibra e desequilibra a balança para trazer parte da angústia e do descanso que o fim apresenta é dos elementos mais potentes do romance.
"Antes da encarnação, eu não tinha peso. O paradoxo é que eu preciso pesar para conhecer a leveza. A ebriedade libera o peso e dá a impressão de que vamos voar. O espírito não voa, desloca-se sem obstáculo, é muito diferente. Os pássaros têm um corpo, seu voo vem da conquista. Nunca me cansarei de repetir: ter um corpo é a melhor coisa que pode acontecer."
Os milagres não são fruto do espírito, segundo o narrador, mas do corpo, da casca. Não se trata de coisas espirituais, mas de necessidades terrenas. O corpo é palco do amor e do ódio, do ordinário e do extraordinário, nele se encontra as dores e alegrias, ele sofre os castigos e a dores, e sem ele não é possível desfrutar da experiência humana, tampouco estabelecer uma conexão com o Pai.
"Sou como todo mundo, tenho medo de morrer. [...] Escolhi isso? Parece que sim. Como pude escolher ser eu? Pela razão que preside a imensa maioria das escolhas: por inconsciência. Se nos déssemos conta, escolheríamos não viver."
Para Jesus escolher a encarnação é estar ciente de escolher a finitude, a morte. O que não contava, nem poderia supor, é as inconsistências e surpresas da jornada. Apaixonar-se por Maria Madalena, irritar-se com uma figueira por ter fome e ela não ter frutos. Em certo momento, chega a afirmar ter tido mais complacente com a macieira que nos legou o pecado original que com a figueira que lhe teria negado frutos em meio a estação seca.
"Na verdade, digo-vos: cultivai o que sentis quando estais morrendo de sede. Eis o impulso místico. Não é uma metáfora. Quando a fome cessa, isso se chama saciedade. Quando cessa o cansaço, isso se chama repouso. Quando se cessa de sofrer, isso se chama reconforto. Cessar de ter sede não tem nome. [...] A língua, em sua sabedoria, compreendeu que não era preciso criar um antônimo para sede. Podemos estancar a sede e, no entanto, a palavra estancamento não tem esse significado. [...] Há pessoas que não se consideram místicas. Elas se enganam. Basta ter ficado morrendo de sede por um momento para acessar este estado. E o instante inefável no qual o sedento leva aos lábios um copo d'água é Deus."
A sede é a necessidade mais humana e a sequidão o solo fértil para semear e colher bons frutos. Essa sede literal e metafórica é capaz de fazer mergulhar do inimaginável, no mais compassivo e belo, e a ver-se no espelho cristalino que é o outro, o próximo. É a sede que faz o humano ser capaz de abandonar a si mesmo para ser acolhido no abraço de um outro. A sede leva Jesus mais perto do Pai, porque o lembra daquilo que o Deus-Pai, o que é espírito, jamais poderá compreender. Eis o mistério e a beleza da encarnação.