Inhamuns, de Kah Dantas
O compositor, cantor e ícone cearense Belchior compôs, em 1974, a clássica Na hora do almoço. Com delicadeza, poesia e nítida crueza relata o medo nas relações familiares, os segredos guardados pelos silêncios, pelas mágoas acumuladas, pelos desencontros e divergências.
"No centro da sala, diante da mesa
No fundo do prato, comida e tristeza
A gente se olha, se toca e se cala
E se desentende no instante em que fala"
Como no teatro, cada ator em sua marca, um tabuleiro de xadrez em que cada peça precisa estar em seu lugar e cumprir a sua função. O pai não pode ser mãe, a rainha não pode ser torre, tampouco o cavalo peão. E assim nos resta apenas cumprir com a função que nos deram, ocupar o nosso espaço à mesa, decorar as falas e desempenhar o papel de boa filha, de bom moço, de peão obediente. E quando a roupa não nos cabe? E quando o lugar se torna pequeno demais para caber nossos desejos e sonhos? E quando o lugar à mesa é demasiado incoveniente para conter os prazeres do corpo?
"Cada um guarda mais o seu segredo
A sua mão fechada, a sua boca aberta
O seu peito deserto, sua mão parada
Lacrada e selada
E molhada de medo"
Inhamuns, romance da cearense de Kah Dantas, é sobre isso, esse lugar que não nos cabe, mas que cabe na gente; de onde a gente foge para não voltar sem perceber que o carregamos, sem se dar conta de que na busca pela liberdade seguimos de alguma forma marcados por esse lugar à mesa, e tudo que se pode gritar nunca supera o silêncio que deixa o peito deserto, a mão parada, lacrada e selada e molhada de medo.
O sertão do Inhamuns é uma região socioecnômica do Ceará que engloba alguns municípios, dentre eles, Tauá, cenário do romance. Uma jornalista nascida na cidade, mas radica em Porto Alegre, retorna ao lugar de onde partiu para não voltar para escrever sobre um sítio arqueológico. Esse retorno é um retorno à mesa da avó, para a hora do almoço, com a tia maldosa, a cadeira vazia da mãe ousada demais para sentar-se no lugar que lhe deram, do pai transeunte que nunca conheceu e desse lugar que sempre sentiu não lhe caber.
Essa é a parábola do filho pródigo, que parte para longe para não voltar, mas por circunstâncias adversas retorna ao pai. Se na párabola bíblica o filho encontra o pai que vai ao seu encontro e o abraça e o silencia e mata o novilho cevado e festeja o filho que estava morto e tornou a viver, aqui não há nem abraço, nem palavras de amor calando o pedido de perdão, nem novilho cevado, nem novas vestes e sandálias nos pés ou anéis em seus dedos. Não há festa, mas apenas medo, mágoa e tudo vertido e convertido em deslumbramento e celebrado no ritual e na sacralidade da entrega e do ato sexual.
O corpo desponta com lugar sagrado, altar, despojado à beira da estrada, sobre a caatinga, sob o testemunho mudo do luar e da noite sertaneja. Kah constrói com beleza e destreza uma simbiose entre a aridez da terra, a beleza que só o sertão tem e que se espraia na retina e na alma, o desejo feminino (e que aqui não é de todo livre, é urgente. É mais linguagem e escape que consciência e emancipação). E se o corpo é altar, o sexo é ritual sacrificial. É hóstia consagrada dissolvendo-se na língua pecadora.
As relações de outrora emergem como se o tempo não tivesse passado, como se o peso dos anos não houvesse de cobrar o preço trágico de conservar em si aquilo do qual deveria ter fugido. A filha pródiga não encontra a prodigalidade do amor de quem a espera.
Toda essa gama de conflitos emerge como um corpo devolvido pelas águas do açude, como os laços desfeitos, como segredos guardados, feras enjauladas, a apontar, tal qual as formações rochosas descobertas no sertão dos Inhamus, para o mistério.
O relato de Kah é urgente como as forças que movem sua narradora, quase que consciente da brevidade da vida, da fragilidade dos dias que passam e passam e passam desapercebidos de quem vai ficando léguas atrás.
Já diz Belchior: "E eu inda sou bem moço pra tanta tristeza/Deixemos de coisas, cuidemos da vida/Senão chega a morte ou coisa parecida/E nos arrasta moço sem ter visto a vida". Mas tristeza e morte nunca foram conhecidas por sua generosidade. Há vezes que se leva nos passos a melancolia que se esconde na alma, desenboca em gestos urgentes e impensados, em gestos impensados que ferem e deixam ferir, porque muitas vezes é só medo e dor o que nos lembra o que é estar vivo.
Inhamuns tem tudo para parecer apenas um livro, com uma história que já lemos ou ouvimos, mas consegue nas entrelinhas ser mais, empregar um sotaque, um tom, uma força tão íntima e delicada que não passa despercebida. Vale a pena conferir.