O DIALETO DE CANAÃ – UM ROMANCE-TESE
Falar de modernismos e de redescoberta do Brasil significa tratar de algo que está, ainda, para além de Mário de Andrade, Di Cavalcanti, Portinari, entre outros. É falar ainda de como o Brasil foi visto e representado nessa tentativa de redescoberta. Naquele momento, segundo Antonio Candido, a chamada “consciência do subdesenvolvimento” era uma tônica, mas não a única. José Pereira da Graça Aranha, autor do romance Canaã, o “imortal” que “desimortalizou-se” ao requerer sua saída da Academia Brasileira de Letras, inaugurou uma discussão que mais tarde Jessé Souza e outros sociólogos e historiadores tomariam como um ponto de debate permanente. Mais ainda, fez um romance-tese que aborda questões diversas, do militarismo à opressão feminina, cujas sugestões são tão úteis para a compreensão do Brasil de ontem e de hoje quanto o são as teses já conhecidas sobre nossa formação nacional.
Para além do que se reconhece como romance-tese (o que conduz uma narrativa através de dúvidas filosóficas), Canaã é ainda um romance em que a riqueza das imagens se mistura ao diálogo dos dois protagonistas, Lentz e Milkau. Se há problemas no chamado romance-tese, um deles seria a quase completa suplantação da narrativa em prol da discussão filosófica. Não raro o leitor se vê enfadado com as discordâncias ora generalistas, ora pontuais com que Milkau procura fazer com que Lentz enxergue a beleza da natureza, do ser humano e do amor. Algo, todavia, é revestido pela aparência de um romance supostamente sobre ideais humanos tidos por universais. E é aqui que a narrativa ganha seu brilho.
Sem entrar no mérito da sinopse, Canaã busca ser o máximo contendo os mínimos detalhes em termos de leitura do que é o Brasil. O racismo, enquanto uma realidade social para se compreender nossa formação nacional, é um desses detalhes. Graça Aranha o retrata até de uma maneira preditiva: cerca de 40 anos após a publicação do livro, o racismo científico daria subsídios ao germanismo mais exacerbado da Alemanha de 1940, com seus reflexos sutis e não sutis sobre o Brasil. Canaã talvez soe enfadonho se lido apenas e tão somente como um romance em que a premissa não se distancia dos romances românticos, embora ali já se observasse reflexos do modernismo (na crítica do desenvolvimento, no nacionalismo, no regionalismo), mas este se torna interessante se percebido pela perspectiva de um dialeto subsumido à fala de Lentz e Milkau; um dialeto que necessita ser observado.
O dialeto de Canaã é o dos imigrantes alemães na costa brasileira do Espírito Santo. Mais do que isso, é o dialeto dos alemães que viam os brasileiros como seus inferiores; e o Brasil como uma terra onde poderia florescer uma nova Alemanha. Essa era, sobretudo, a compreensão de Lentz, em seus ldiálogos com Milkau acerca da gente da terra, da natureza, do significado da liberdade, do amor e do bem viver. Porém, as falas de Lentz também evocam o racismo científico (a compreensão pseudocientífica sobre a hierarquia de raças humanas), ao passo que aludem a um eurocentrismo comum à época: não são raras as passagens em que o brasileiro é visto como um ser inferior. Um racismo disfarçado de germanismo que se encontra diluído nas falas algo inocentes de Lentz, sob os olhares por vezes tolerantes de Milkau.
Ao ver a terra, os dois personagens não se furtam de considerar o Brasil ora uma terra inabitada pela civilização, ora um paraíso tropical. É a discordância principal entre Lentz e Milkau, respectivamente. Tais compreensões ecoam não apenas no significado original de racismo, mas também no chamado “racismo de classe”, um conceito aludido por Jessé Souza, em A Elite do Atraso, para compreender como as supostas elites brancas e europeizadas, mesmo que de maneira silenciosa, veem os mais pobres, nordestinos e negros como raças inferiores, expandindo a compreensão socio-histórica original do racismo científico (que se alarga também para questões geográficas).
Se há beleza em Canaã esta se encontra nesse idioma das contradições; um dialeto que se fixa na descrição dos espaços e na diegese entre os diálogos e a paisagem, dando a perceber que se fala da natureza, mas também do ser humano. Paisagem que é física e, ao mesmo tempo, social. Embora do meio para o fim a narrativa dê conta de uma tragédia e de uma fuga de um casal em busca de Canaã, a visão filosófica do germanismo de Lentz se encontra nas impressões cotidianas da paisagem. Tais impressões guiam, de forma simbiótica, uma compreensão ora inferiorizada, ora redentora, da gente e da terra à maneira como os colonos europeus e europeizados a viam. Uma concepção redentora que parecia ser a tônica dos europeus imigrantes e da política de Estado racista no Brasil de início do século XX; afinal, a redenção do Brasil como “país do atraso” passava pela estrutura econômica e social das chamadas políticas de branqueamento, como alude o professor Kabengele Munanga em seu maravilhoso livro Rediscutindo a mestiçagem no Brasil.
Ora, percebe o dialeto do romance, a dúvida principal (e aqui podemos refletir se o romance-tese é guiado ora por uma dúvida principal, ora por dúvidas secundárias), quem entende que o Brasil, ainda que de forma sub-reptícia, carrega traços de Lentz e Milkau: na política, na cultura, nos costumes. Quando vemos que os dois colonos alemães são acompanhados por personagens que não têm nome, como “o cearense” ou “o maranhense”, Graça Aranha representou como esses brasileiros eram vistos pelos imigrantes europeus e sua compreensão racial do Brasil: como “gentílicos” reduzidos à seu local de origem. Não sem propósito, Canaã seria a terra prometida; resta aos leitores treinados (no livro, no Brasil) saber para quem.
PS: o livro está disponível também em áudio-book: https://archive.org/details/canaa_1901_librivox
Sobre o autor
João Matias é escritor, sociólogo e professor. Docente na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Publicou O Lugar dos Dissidentes (2019) pela Editora Escaleras, dentre outros. É um dos editores da Revista Blecaute de Literatura e organizador do Encontro de Literatura Contemporânea, em Campina Grande - PB.