Interrompidos, de Alê Motta
As palavras matam.
Auferindo ao título uma designação proporcional ao que a obra de Alê Motta, Interrompidos (Editora Reformatório/2017), sugere, o objeto central que se coloca, a morte, junto ao sintagma da resenha, retrata as andanças da linguagem dos errantes, encontradas nas 128 páginas englobadas no pequeno livro.
As palavras matam compõem o jogo dos silêncios uma vez suspensos, agora sob imersão. Mas que silêncios seriam esses, mesmo que articulados nas paisagens das memórias das personagens a ponto de ter uma sensação mortuária?
Narratividades concatenadas nesse mote (e seus ramais sinestésicos) examinam o uso espesso de recursos linguísticos, tais como a bufonaria literária, a carnavalização de eventos tanto memoráveis – como no conto da cerimônia do periquito – quanto triviais. A autoironia, a bem evidenciada em segundo exemplo do conto “convite”, cujo final da prosa os respingos de sangue mais se assemelhariam a uma cena de Bastardos Inglórios, porém com a provocação impositiva, deliberada do discrepante elemento conclusivo das hemácias.
Sendo assim, a quebra de expectativa, composta por interrupções contrárias no fluxo narrativo, é reordenado a partir dos objetos de cada conto.
Não obstante, o riso não é um dos únicos instrumentos a serem inferidos como principais constitutivos. A prosa de caráter realista a usufruir de emergências sociais tem fins de questionar os pontos cegos, mesmo que em lúcido desespero.
Descanso
Não tenho um minuto de descanso. Ninguém tem um minuto de descanso. Trabalho, reuniões, deslocamentos no trânsito, festas de aniversário, casamentos. Bodas, festas juninas, a reunião extraordinária da empresa, a maratona dos amigos, a compra do mês no supermercado, a troca do óleo e a limpeza do carro (…)
Pretendo morrer numa quarta-feira, doutor.
Costuma ser o dia menos agitado.
Outro ponto a se salientar seria o uso da argumentação gráfica do livro. As fotos em preto e branco caracterizam o que o escritor W.G Sebald verificou na correlação entre as fotografias da Segunda Guerra Mundial e o que estava embutido na condução das fotografias com os textos.
O autor discorre como a instrumentalização fotográfica possibilitou a postura do caminho da letra ser uma só com a captação da imagem, suscitando ao leitor perguntas a si mesmo se o núcleo gráfico seria de fato. Resultando disso, a concretude dispensa legendas para justificar a utilização de tais ambientações.
Não é de se esperar a epígrafe como a transmitir o reafirmamento da comunicação em prontidão sobre o sentimento desalentado, com um salmo, como se já estivéssemos em contato com um desfalecido a entrar em um processo ritualístico no que garante as tensões e abates em nossa participação ativa como leitores.
“Que homem há, que viva, e não veja a morte?” (Salmos 89: 48a)
A acepção da morte é o reflexo da consciência da realidade. Se tal fenômeno é consequente disso, o sólido da dor pode ser considerado dentro da configuração das funções narrativas dos contos de Alê, como um monólogo em muitos dos casos, prestes a estender a mão, umedecê-la para não cair na corrosão nominalista do que seria o luto e suas dimensões.
“De perto não tenho escolha. Hoje faz um ano. Seu vestido favorito. Na areia. De perto a dor é insuportável. Hoje vai chover”
Igual a um monólogo no qual a protagonista na estrutura fílmica se vê questionando a si mesma, seja em um plano aberto, fechado, plongée etc., a recepção das curtas sequências textuais da escritora demonstram um mergulho em si. Contudo, não sendo ensimesmado.
Por conseguinte, a autora impele ao sujeito leitor a colaborar no constructo de sentidos, trazendo-lhes para uma modalidade de discurso alargado para outras realidades a partir das bases sintáticas e fônicas depositadas. As tramas são evocadas a partir da indiferença, da aridez em busca do que se poderia canalizar como suporte ao inesgotável das histórias horrorizadas.
Mas, ao mesmo tempo, fidedignas não ao embrutecimento da consciência, mas sim na legitimação dos contrastes das ideias e, para não dizer, um ode a um leitor de coragem com sua perseverança em não tapar os olhos com o que assiste em suas casualidades.
por Lorraine Ramos, tem textos publicados em 12 revistas digitais ao longo de dois anos e meio, tais como Ruído Manifesto, Mallarmargens, Vício Velho e Aboio. Em seus 25 anos, é uma artesã do caos.
É estudante de Sociologia, na UFF. Integrou a antologia Ruínas, da editora Patuá, e a antologia LiteraturaBr. Concedeu duas entrevistas no canal "como eu escrevo". Colabora com o portal Faziapoesia.