28 de março de 2022

Como e por que ler Lenilde Freitas?

Há duas perguntas iniciais sobre essa grande poeta de Campina Grande. A primeira é do como, a outra é do por que ler. Tentarei responder à primeira sem guardar segredos sobre a necessidade da segunda. Porque Lenilde Freitas não é só aquela que para este autor é uma das mais importantes poetas paraibanas da atualidade, mas também porque a maior parte dos seus livros, editados desde os idos dos anos de 1980, são difíceis de encontrar tanto em livrarias como nos sebos espalhados Brasil afora. Até para os mais diletos ratos de sebo, Lenilde Freitas é uma procura labiríntica. Possivelmente, alguns dos seus livros publicados jazam esquecidos nas bibliotecas universitárias; uma extensão e, ao mesmo tempo, uma metáfora do silêncio ensurdecedor sobre sua grande obra.

As informações sobre ela também são esparsas. Constam de artigos da internet e de páginas conhecidas por publicações sobre poesia, como é o caso do blog do Antônio Miranda. Não se encontram muitas biografias ou relatos biográficos oficiais sobre a poeta, todavia haja trabalhos acadêmicos sobre sua poética e que ela própria fora homenageada pela Universidade Católica de Pernambuco. E então sabemos que Lenilde Freitas é filha de pais pernambucanos, embora tenha nascido em Campina Grande; que foi tradutora, poeta, mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco; que recebeu prêmios no Brasil e no exterior, a exemplo do All Nation Poetry Contest e do Prêmio Nestlé e Pasárgada de poesia (dois prêmios famosos no Brasil de anos passados). Mas, o que há além disso?

A poesia de Lenilde Freitas é marcada pela sazonalidade. Sim, esta qualidade que se entende do longo processo de amadurecimento das romãs; uma metáfora do tempo, portanto. Suas imagens, quase sempre espaciais, beiram o recolhimento expansivo de uma poeta que olha em torno para compor suas próprias paisagens; de reinventá-las, como se deusa e arquiteta não só do mundo, mas do tempo, dos animais, das coisas. É exemplo dessa arquitetura do espaço-tempo o poema Dessemelhanças:

 

DESSEMELHANÇAS

Do lugar em que estou
vejo a calçada do outro lado
e um cachorro que passa
triste como quem fareja
a própria morte.
Aqui, enquanto dois relógios batem
dessemelhantes idêntica hora,
uma vespa insiste
rancorosos declives no vácuo
onde adivinho partículas
de poeira imitando cardumes
— pois só tenho olhos para uma coisa:
o cão subindo a rua
que, sendo a mesma, muda de nome
a alguns quarteirões daqui.

 

É, portanto, nesta observação do mundo, filtrada por versos claros, concisos e reflexivos, que Lenilde Freitas expande a sintaxe e o significado do simples. Antonio Candido diria que uma das características fundamentais da modernidade seria a de “dizer muita coisa por meio de poucas, quase nenhumas palavras, organizadas numa sintaxe que parece fechar a comunicação, mas na verdade multiplica suas possiilidades”¹. O olhar poético pousado sobre as coisas, em Lenilde Freitas, o quase epigramático, mostra uma poesia renovada pela grandeza da imagem, pelo sentimento impregnado no ritmo do poema e em sua concisão lírica, que dispensa o argumentativo e se joga no que pode ser estranhamente familiar:

 

INFÂNCIA

 

Desconfio que foste embora

pois tropeço em tua ausência

a cada hora e momento.

E se o luar – como agora –

irrompe janela adentro

pergunto então a mim mesma

se não sou eu que te invento.

 

E como é de espaços que se locupletam as imagens leves e reflexivas de Lenilde Freitas, é também nas cidades e na memória que o figurativo campeia terreno e fecunda a lembrança, o olhar para novas ou renovadas paisagens. É assim na feliz lembrança de Alberto Caeiro e, claro, Fernando Pessoa, no poema Lisboa:

 

LISBOA

 

Tão bom

ficar assim olhando a rua:

pessoas passam na calçada

árvores sonolentas se espreguiçam

o pensamento ocioso pensa em nada.

 

Tudo verdade

tudo mentira nua e crua.

Mais algum tempo

nem eu nem rua

lembraremos.

 

Ah, os que passam

– sonâmbulos caminhantes

dos extremos

 

É principalmente nestes versos dedicados a cidades e pessoas que o espaço-tempo em Lenilde Freitas parece ganhar uma luz ainda maior do que aquela que iluminam coisas, animais, objetos e imagens da infância e da vida. Não sem propósito, os gatos, em The Lane, dão uma nova vida ao que seria um recolhimento melancólico sobre a passagem do dia e, concomitante, ao imponderável da vida ignorado em seu significado por eles:

 

THE LANE

 

Debruça-se a noite com afeto

sobre o dia morto

jogado sobre o teto.

Gatos misteriosos

amam-se nos becos

ignorando o fato.

Portões soluçam secos

e nas gramas enlutadas

sombras adormecem conformadas

Por que ressuscitar o dia

se as noites já estão determinadas?

 

A cada uso dos objetos, animais, cidades, memórias, Lenilde Freitas constrói o que seria uma “arquitetura esplêndida de um castelo de ausências”². Nessa sintaxe de imagens, os sentimentos ganham vida e se misturam com o tempo que existe para seres humanos, estações do ano, mundos e paisagens:

 

LUTO

 

Enquanto me adapto a este novo mundo

igualmente vazio como está o teu

e abafo soluços neste velho gramado

agora mais frio agora mais breu,

lembro-me que as estações sempre voltam

e que o sol real e eterno não é uma quimera.

Olha: ainda sou toda inverno

e já renasces primavera.

 

Há muito ainda que se dizer de Lenilde Freitas, e que um espaço tão exíguo quanto o deste ensaio não o faria. A musicalidade de seus versos e seu controle acurado das imagens faz-lhe render sinceras e emocionadas homenagens a amigos e amigas próximas, neste que será o último aspecto que destacarei de sua trajetória poética. Nas páginas finais do livro A Corça no Campo, coletânea de Lenilde Freitas editada pela própria autora, encontram-se os chamados “tributos”. Neles, a memória de pessoas, autores e autoras que marcaram de algum modo a vida da poeta são homenageados a partir do que chamamos aqui de “arquitetura de um castelo de ausências”. Destaco, para finalizar este ensaio, um tributo a Graciliano Ramos, em que, mais uma vez, tempo e espaço parecem dar os acordes melancólicos da memória e do sentimento:

 

A GRACILIANO RAMOS

O dia é um rio. E nele
bebo as estrelas do céu
e recrio
nos remansos de cobras
os bambuzais.
Ao léu, penso ovelhas,
penso folhas que não caem,
carícias de vento nos coqueirais
— a vida que se disfarça.

Do trem que não passou,
penso a fumaça.

 

E é assim, dona de um canto das ausências, dos sentidos e da poética enquanto estações de imagens que Lenilde Freitas nos oferta essa poética em abismo. Concentração e densidade do sentido em poucas palavras. Uma poesia que se faz entre a musicalidade e o silêncio das sensações impercebidas. Um dia labiríntico, silencioso e leve para o arco de 180 graus percorrido pelo sol aos nossos olhos. Infelizmente, esse arco somente pode ser acessado por poucos, uma vez que seus livros são difíceis de encontrar, mas na nota de rodapé deixarei referência aos que foram publicados e às páginas na internet onde seus poemas podem ser encontrados³. Versos, pois, de uma aguerrida escritora que, em seu castelo de ausências, nos põe diante de uma fábula nua e crua do próprio tempo.

 

NOTAS:

¹ Menção no prefácio a Antonio Candido, encontrada em: FREITAS, Lenilde. A corça no campo: coletânea poética / Lenilde Freitas ; prefácio de Lourival Holanda. Recife: Ed. da autora, 2010. pp. 17.

² Definição de Lourival Holanda, em A corça no campo, citado acima.

³ Os livros publicados por Lenilde Freitas são, pela ordem: Desvios (1987); Esboço de Eva (1987); Cercanias (1989); Espaço neutro (1991); Tributos (1994); Grãos na eira (2001): A casa encantada (Infantil, 2009).

As páginas que contém alguns poemas de Lenilde Freitas são: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/paraiba/lenilde_freitas.html (blog do Antonio Miranda); http://www.algumapoesia.com.br/poesia3/poesianet251.htm (blog Poesia.net). http://www.mallarmargens.com/2013/08/8-poemas-de-lenilde-freitas.html (Revista Mallarmargens)

 

OBSERVAÇÃO: Alguns livros da Lenilde Freitas ainda podem ser encontrados na Estante Virtual ou em livrarias, sobretudo exemplares de A corça no campo (2010) e Grãos na eira (2001).

 

Sobre o autor

João Matias é escritor, sociólogo e professor. Docente na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Publicou O Lugar dos Dissidentes (2019) pela Editora Escaleras, dentre outros. É um dos editores da Revista Blecaute de Literatura e organizador do Encontro de Literatura Contemporânea, em Campina Grande - PB.